São Paulo, quinta-feira, 28 de setembro de 1995
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Cortina de fumaça

OTAVIO FRIAS FILHO

Começa a ficar claro que o verdadeiro projeto Cingapura de Maluf não tem a ver com habitação, mas com a auto-reforma desse político que não pára de aprimorar seus defeitos. Não é Nova York, afinal, o objeto das macaqueações (cinto, cigarro, rodízio de automóveis) e sim a ditadura asiática que açoita pichadores de rua e pode enforcar quem for pego com chiclete.
Estávamos perplexos: seria possível que a reviravolta no mundo chegasse ao requinte do escárnio de transformar Maluf, o mais truculento dos nossos governantes, em pioneiro politicamente correto? Era como se um bando de malfeitores de repente abrisse uma creche. Pior: Maluf mostrava como emplacar uma lei num país onde elas não colam.
Pegue uma idéia com charme internacional, embora algo supérflua numa cidade onde milhões vivem na pior miséria e violência. Venda essa idéia como imprescindível à nossa modernidade, atestado da nossa primeiro-mundice, e imponha o decreto aos poucos, antes como conselho, depois como multa e só no fim como prisão.
Transforme os que aplicam as penalidades em propagandistas do Estado, militantes da pureza (do ar, por enquanto); submeta as vítimas a sermão, além de multa. Como na Alemanha dos anos 30, vá criando uma atmosfera de vergonha, estigmatize quem não se intimidar, afixe avisos -"aqui não se fuma"- na porta de estabelecimentos judaicos.
Desloque os opositores, aqueles para quem a democracia é mais do que uma mera ditadura da maioria, de modo que eles se vejam obrigados a defender as causas mais estúpidas: o direito de se esborrachar no trânsito, de fumar até morrer. Exemplo para a juventude sadia, eles serão a prova de que ser do contra é estar doente, politicamente aidético.
Como o nosso destino de país parece ser o de não contribuir com nada de original para o mundo, tudo isso, além de caricatura do desenvolvimento desigual e combinado, é uma espécie de farsa da farsa. Para não perder o hábito, Maluf vende gato por lebre, Cingapura por Nova York, vulgaridade por "finesse".
O que ocorre é que em toda parte o Estado deixa de regular a economia e transfere sua força de repressão para a vida particular, psíquica e comportamental. O próprio Estado parece desmilinguir-se, mas só nas aparências: ele apenas muda de lugar, infiltra-se na capilaridade social; é certo chamar as ONGs de organizações neogovernamentais.
Não é que o Estado esteja em crise e por consequência a sociedade se torne mais livre; ao contrário, a sociedade se totalitariza, tornando o Estado, no sentido tradicional, obsoleto, desnecessário. Autocensura verbal, culto à saúde, ecologia, feminismo etc. são a nova linguagem oficiosa.
A lei anterior, aprovada na gestão Erundina e violada agora pelo decreto malufista, obrigava os lugares públicos a manterem alas de fumantes e não-fumantes. Funcionava muito bem, sujeitando os dois grupos à fricção de seus direitos opostos, porém contíguos, permitindo que ambos se educassem na tolerância recíproca.
Mas Maluf não quer saber de cidadãos e sim de pigmeus morais como os habitantes de Cingapura. O biônico agora é antitabagista, o apaniguado do regime militar virou uma flor de pessoa, o bem e o mal aliás trocaram de posição, e num mundo cada vez pior quem nunca muda dá até a impressão de que melhorou.

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