São Paulo, sexta-feira, 29 de setembro de 1995
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Crenças e mitologias têm pontos em comum

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Nelson Ascher, no Mais!, e Roberto Pompeu de Toledo, na "Veja", têm toda razão ao criticar o ensino religioso nas escolas públicas. O governo estadual se apronta para adotá-lo. É o que determina, aliás, a Constituição de 1988.
Mas como! Não há separação entre Igreja e Estado? E, mesmo que as escolas estaduais não se restrinjam ao catecismo católico, que outras religiões deverão ser ensinadas? Com malignidade e humor característicos, Nelson Ascher lembra que cultos orgiásticos, bacanais desenfreados, ingestão de drogas também fazem parte de muitas religiões. Quantas religiões há no mundo? Quantas já houve? Como garantir um ensino imparcial de todas, ou de algumas?
Tenho muita antipatia pelo ensino religioso. Vou além: as aulas de educação física também deveriam ser abolidas; no máximo, uma ginástica facultativa seria admissível. E o que dizer da TV Cultura, que às custas do contribuinte judeu, muçulmano, budista ou protestante transmite a missa católica todos os domingos?
Quando se pensa nas extremas deficiências do ensino de português, de matemática, de ciências ou de história na rede pública, a idéia de promover a cultura religiosa dos alunos parece totalmente fora de propósito. O dispositivo constitucional e a determinação de aplicá-lo inspiram-se nos grupos de pressão mais obscurantistas de nossa sociedade. Católicos e evangélicos não discordam muito quando se trata de reprimir o pensamento, atrasar a liberdade individual, vender ilusões, criar recalques, governar destinos, amedrontar os tímidos e explorar o que há de mais covarde e infantil no ser humano.
Mesmo assim, há o risco de seguir raciocínios simplistas ao abordar essa questão. A crítica ao ensino religioso considera evidente, por exemplo, que em questões de fé o Estado não deve se intrometer, que não é função da escola pública lidar com um assunto de ordem puramente individual, como a convicção religiosa.
Não vejo as coisas com tanta clareza. A religião é assunto de cada um, concordo. Ou melhor: a religião deveria ser assunto de cada um. Acontece que, atualmente, não é. Cada criança, sem que lhe façam muitas perguntas, é em geral doutrinada pela família numa série de crenças; antes que pense sozinha, em geral já está inserida numa religião qualquer.
Só mais tarde, se tiver sorte, haverá de tomar contato com outras formas de espiritualidade, com outros rituais, com outros preconceitos. Poderá então escolher outra fé, persistir na que sempre teve ou negar todas as que existem.
Nesse sentido, fico pensando se um ensino religioso amplo, eclético, não teria a vantagem de relativizar, no aluno, as crenças que lhe foram transmitidas como verdade absoluta. Aulas bem dadas de história da religião poderiam contar, por exemplo, de que modo surgiram certos dogmas da Igreja Católica. A virgindade de Maria, a Santíssima Trindade, a infalibilidade do papa, a existência do Purgatório, são por exemplo idéias que têm uma história, foram decididas em concílios. Houve prós e contras, injunções políticas, disputas econômicas, regionais e pessoais atrás de cada frase do catecismo.
Seria especialmente instrutivo, também, dar algumas aulas sobre as previsões do Fim do Mundo: quantas já se fizeram, pelas seitas mais diversas, quantas vezes já se acreditou nisso, e de que modo algumas religiões corrigiram seus cálculos, dada a evidência de que o prognóstico era falso.
Conhecer melhor a história do Cristianismo, suas dívidas face aos cultos órficos e dionisíacos, não seria desinteressante. Saber que há religiões sem um Deus personificado, que há religiões que onde a liberdade sexual não é pecaminosa, que admitem o aborto, a poligamia, o homossexualismo, não é um conhecimento inútil.
Poderíamos ter, em vez de uma catequese estreita paga pelo contribuinte, uma verdadeira iniciação à tolerância religiosa. Isso seria possível tanto ao ensinar a diversidade das religiões, quanto ao demonstrar os inúmeros pontos em comum que as mais variadas crenças e mitologias têm entre si - a idéia do Dilúvio, do Paraíso Terrestre, do Deus devorado ritualmente (a eucaristia), do Deus-bode expiatório, aparece em muitas culturas.
Na hipótese -algo longínqua, reconheço- de criar-se um ensino religioso desse tipo, estaria sendo prestado um serviço público. O aluno, preso às tradições de seu meio familiar e cultural, perceberia que as supostas verdades de sua religião, ou da religião predominante, não são tão absolutas assim.
Pode-se argumentar que isso é assunto dele, que a fé é um problema individual. Não tenho tanta certeza. As ações de fanáticos religiosos, o crescimento de fundamentalismos de todo tipo, são assuntos de segurança pública. As opressões que existem na esfera familiar, na relação entre os sexos, na vida cotidiana, encontram muitas vezes as mais detestáveis justificações de ordem religiosa. O desenvolvimento intelectual e material de uma sociedade é muitas vezes entravado por dogmas inventados há milênios.
Não estamos mais, portanto, num campo de preferências puramente individuais; seria bom se a religião fosse apenas uma escolha livre do indivíduo. Não é; e até seria bom se o governo zelasse para que fosse.
Se, por hipótese, o governo pudesse dar um ensino religioso de boa qualidade, isto é, de cunho antropológico e histórico, eclético e aberto, creio que a sociedade toda haveria de se beneficiar. Surge a contestação: "Sobre que religiões esse ensino supostamente imparcial iria falar? Como evitar favorecimentos, como selecionar entre as minorias?"
A pergunta não me parece fazer muito sentido. As principais religiões do mundo, isto é, as que concentram grande número de adeptos, não são tantas assim. E as que têm relevância no Brasil tampouco são inumeráveis. Falar sobre as principais não é ser "parcial" - do mesmo modo, em Geografia, ninguém acha que se deva passar meses estudando o relevo da Austrália ou a vegetação da Lapônia.
A meu ver, o problema do ensino religioso não é de princípio, mas de prioridade e de recursos. Não está necessariamente ligado à questão da separação entre Igreja e Estado, entre poder temporal e poder espiritual, nem haveria obrigatoriamente de ferir as convicções individuais. O risco, numa sociedade como a brasileira, é que o Estado viesse a recrutar professores junto à Igreja Católica, ou no máximo junto a alguns grupos evangélicos. É isso o que eles querem, e por isso defendem o dispositivo constitucional.
Nada pior do que assistir as já escassas verbas para a educação alimentando o proselitismo religioso. Se até as regras da ortografia e da aritmética são mal ensinadas, imagine-se o que seria feito de um assunto tão mais complexo e carregado de conotações emocionais.
Como as ameaças de fanatismo e intolerância ainda são, felizmente, pequenas em nosso meio, o melhor seria não mexer nesse vespeiro por enquanto. Mas confesso que, em condições mais favoráveis no que diz respeito a verbas e a formação de professores, não me é antipática a idéia de um ensino religioso que funcionasse, não como transmissão de doutrina, mas quem sabe como dissolução de dogmas, de antídoto para a crendice, como escola de ceticismo, ou pelo menos de tolerância.

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