São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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De Geisel a FHC

RICARDO MUSSE
DE GEISEL A FHC

Lições da Década de 80
Lourdes Sola e Leda M. Paulani (orgs.)
Edusp/Unrisp, 287 págs.
R$ 17,00

Anos 90 - Política e Sociedade no Brasil
Evelina Dagnino (org.)
Brasiliense, 172 págs.
R$ 17,00

Dois seminários, um na USP outro na Unicamp, realizados respectivamente em maio e em novembro de 1993, vindos agora a lume sob a forma de livro, propuseram-se a pensar uma mesma questão: os impasses dos anos 80 e as perspectivas para a década de 90, ou melhor, os rumos e o legado de uma longa transição (do autoritarismo à vida democrática) que só agora parece ter-se encerrado.
Os artigos de maior pretensão e fôlego explicativo, de autoria de Lourdes Sola, Luiz Carlos Bresser Pereira e Brasílio Sallum Júnior (todos na coletânea "Lições da Década de 80"), procuram cada qual à sua maneira avaliar -apontando para o futuro- os descaminhos da sociedade e da economia brasileira nesses anos.
Embora Lourdes Sola, de acordo com o projeto e o título do seminário/livro, se esforce em mostrar que os anos 80 não foram uma década perdida, o Brasil parece ter -quaisquer que sejam os critérios de análise- marcado passo nesse período. Tendo em vista, por exemplo, as expectativas do ponto de partida -o anseio por democratização com redistribuição de renda- ao final de uma década na qual o ritmo de crescimento praticamente empatou com o aumento da população, o que se constatou foi o aumento da desigualdade e da pobreza (1). Da perspectiva do ponto de chegada, do ajuste frente às novas exigências do capitalismo mundial, retardou-se em demasia a transição para uma economia mais afeita a um "mercado globalizado".
Na verdade, Lourdes Sola não ignora esses fatos. Sua tese é a de que o ganho se deu sob a forma de um aprendizado: "A lenta e penosa formação de uma cultura governista entre os antigos críticos do regime autoritário -por contraste com a cultura oposicionista dominante entre as elites políticas relevantes antes de ter acesso ao poder" (pág. 38).
Problemática e carregada de valoração, essa afirmação aponta para uma questão real: a partir da segunda metade dos anos 80 (após o fracasso do plano Cruzado, como querem alguns, ou depois da Constituinte, como querem outros), o projeto das elites intelectuais e políticas -encarnadas singularmente na figura do intelectual-político Fernando Henrique Cardoso- modificou-se substancialmente. Mudaram-se as ênfases, mas não a compreensão da transição como processo dual, ao mesmo tempo político e econômico. Enquanto no primeiro momento a componente econômica -pensada então como crescimento com redistribuição de renda- era apenas uma variável dependente das reformas políticas e institucionais, no momento seguinte ela assumiu o primeiro plano -já pensada enquanto estabilização monetária- passando à pré-condição do encaminhamento democrático.
A clareza, ou melhor, a crueza de Lourdes Sola (próprias ao acadêmico eximido da necessidade de angariar apoios políticos) nos fornece, novamente, a melhor definição do que está em jogo nessa inversão de prioridades: a escolha "entre a lógica da estabilização e da iniciação das reformas estruturais, que é concentradora de poder: e a lógica da construção democrática, que, sendo descentralizadora, pode chegar a ser centrífuga" (pág. 35).
A opção de Sola é inequívoca. A questão da "governabilidade" só se resolve dando marcha à ré no processo de democratização, no avanço federalista etc. Trata-se de reconstituir, via Estado, um novo pacto de dominação, no qual os intelectuais -agora confiáveis, pois convertidos à "cultura governista"- seriam, outra vez repetindo os anos da ditadura militar, os "guardiões do interesse público".
Não poderia ser outro o horizonte do outrora teórico da tecnoburocracia (2) e atual ministro da Administração Federal e Reforma do Estado, Bresser Pereira. O interesse maior do seu artigo deve-se ao fato de recolocar em pauta os objetivos estratégicos desse "novo pacto". Trata-se de completar o nosso processo de modernização, isto é, de alcançar os patamares econômicos, sociais e políticos dos países capitalistas desenvolvidos. Para nos colocar na rota do Primeiro Mundo tudo é permitido: desde superestimar o papel estrutural do ajuste neoliberal (3) até posicionar Clinton como representante da esquerda social-democrata. O grave porém é que esse alvo (cuja viabilidade problemática nunca se discute) torna-se o ponto de corte da política brasileira, pensada dualisticamente como opção entre "valores e práticas arcaicas ou modernas".
Ao evitar a tematização da experiência histórica brasileira na qual, como se sabe sobejamente, os ajustes aos novos padrões do capitalismo mundial sempre implicaram em reposição -noutros patamares- do atraso e da exclusão social, o apelo de Bresser à modernização corre o risco de ressoar -como na "Era Collor" - menos como pensamento estratégico do país e mais como retórica de convencimento em favor de práticas de "elevado custo social".
Diga-se, porém, em favor de Bresser, que esse diagnóstico decorre de uma análise pessoal e original da história do Brasil pós-30, elaborada em função de coalizões de classes.
Nessa ótica, o vácuo político instalado no país após o fracasso do plano Cruzado (1986) é tributário principalmente das insuficiências do "pacto democrático-populista de 1977", responsável em última instância pela crise fiscal do Estado devido à sua insistência em tentar redistribuir rendas. Tal pacto, surgido após o "pacote de abril" (4) só conseguiu alcançar um entre os vários objetivos propostos: restabelecer a democracia, o que em si não era tão complicado, uma vez que, como bem observa Bresser, a consolidação do sistema capitalista no Brasil já permite que "a nossa burguesia seja capaz de extrair o lucro econômico por meio de mecanismos de mercado em vez de ter que recorrer à força" (pág. 123).
Numa análise mais elaborada e sobretudo mais fundamentada historicamente, Brasílio Sallum Júnior -a partir do patamar comum que explica o dinamismo da democratização em função do desenvolvimento do capitalismo no Brasil- estuda, como Bresser, a transição não tanto em função da mudança do regime político, mas sobretudo focalizando as alterações visíveis no Estado.
Acompanhando passo a passo os percalços responsáveis pelo transbordamento do processo de liberalização do regime autoritário em democratização, Sallum resgata uma variável pouco presente na análise de Bresser, as pressões externas do capitalismo internacional (crise da dívida) que se somam à crise do Estado (e da coalizão) desenvolvimentista.
Diferentemente do economista Bresser situa a dissociação do empresariado com os militares não numa polêmica política (o "pacote de abril"), mas sim numa discordância acerca da melhor maneira de enfrentar uma questão econômica: a crise da dívida.
Privilegiando mais os temas políticos e ainda sob o impacto do governo Collor, a coletânea "Anos 90" abre com uma discussão sobre uma possível reemergência do populismo no Brasil e na América Latina. O populismo não é mais encarado aqui em sua forma clássica -nos termos de Bresser-, como uma crença no poder distributivo do Estado, mas sobretudo enquanto personalização da política (apelo direto ao povo e desprezo pelo sistema partidário), associada, principalmente por Décio Saes, ao movimento de quebra do padrão autárquico e regulamentado das economias nacionais.
Os blocos seguintes abordam dois temas conexos, corporativismo e movimentos sociais. Jorge Tapia modula com precisão a questão em pauta ao indagar pela viabilidade do corporativismo (seja ele societal, autoritário ou estatal) num contexto de reestruturação produtiva e globalização capitalista. Em dois artigos (um em cada livro), Maria Hermínia Tavares de Almeida desfaz os equívocos do senso comum político brasileiro que, após saudar com entusiasmo, no início dos anos 80, a criação de novas associações, localiza hoje no corporativismo um dos obstáculos à nossa modernização. Nessa década teria emergido, por meio de um duplo processo de reforma legal e construção institucional, um novo padrão caracterizado pelo declínio do corporativismo de Estado e pela quebra parcial do monopólio da representação de grupos funcionais, o que aponta para o pluralismo. O que demanda estudos adicionais é o fato de que essa lenta agonia do corporativismo tenha se convertido na retórica neoliberal em acirramento (e que parcelas significativas das elites e da sociedade acreditem nisso).
Na contramão desse elogio da desaceleração da democratização, Vera da Silva Telles, Vanda Maria Ribeiro Costa (em "Anos 90") e, com maiores nuances, Sônia Miriam Draibe (em "Lições") apontam para os riscos de uma dualização maior da sociedade, "dividida entre enclaves de modernidade e uma maioria sem lugar".
Assim, não é de surpreender que pensadores de diferentes posições políticas e sob os enfoques mais variados comecem a colocar sob suspeição o projeto democratizante. Bresser Pereira, apontando o caráter contraditório da nossa cidadania; Antonio Pierucci pesquisando, sob o impacto de uma derrota eleitoral, a mentalidade conservadora; Marilena Chaui esclarecendo as premissas do autoritarismo social e do populismo político; Caio Navarro, a veneração da democracia representativa burguesa pela esquerda brasileira; todos eles, cada qual ao seu modo e em pontos distintos, apontam para as insuficiência do projeto liberal de redemocratização do Brasil.

NOTAS
1. Estes dados podem ser encontrados no artigo de Sônia Miriam Draibe (em "Lições da Década de 80", págs. 212-16) ou no livro de Emir Sader "A Transição no Brasil", págs. 68-70 (Atual, 1991).
2 . Autor entre outros de "A Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia" (Brasiliense, 1981).
(3) Bresser, apoiando-se na letra dos textos de Hayek e companhia, recusa o rótulo de neoliberal para as reformas promovidas por Perez, Salinas, Fujimori e Menem. O neoliberalismo, no entanto, como bem mostra Perry Anderson ("Pós-neoliberalismo", Paz e Terra, 1995), consiste não só numa ideologia, mas na implantação de políticas econômicas -adotadas tanto em países desenvolvidos como em subdesenvolvidos, e implementadas tanto por governos de direita quanto de esquerda-, segundo um figurino ao qual nem os governos mencionados acima nem FHC escapam.
4. Para quem não se lembra, em abril de 1977, o general Geisel fecha temporariamente o Congresso, baixando um pacote de medidas antidemocráticas.

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