São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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O sonho de Furtado

GUIDO MANTEGA

Era da Esperança. Teoria e Política no Pensamento de Celso Furtado
Francisco de Sales Gaudêncio e Marcos Formiga (orgs.)
Paz e Terra, 160 págs.
R$ 18,00

Celso Furtado. O Subdesenvolvimento e as Idéias da Cepal
Reginaldo Moraes
Ática, 119 págs.
R$ 13,80

Nestes tempos bicudos em que o canto da sereia do neoliberalismo seduz até mesmo os veteranos da intervenção estatal, é reconfortante ver publicados simultaneamente dois livros sobre a vida e a obra de Celso Furtado. Afinal, o célebre intelectual paraibano notabilizou-se como o tribuno do planejamento e do intervencionismo, ajudando a industrializar as economias subdesenvolvidas da América Latina. Foi justamente num combate sem tréguas aos cultuadores do mercado, àqueles que queriam perpetuar os privilégios de uns poucos oligarcas e manter a miséria de muitos do velho Brasil agro-exportador, que Furtado arquitetou a sua teoria do subdesenvolvimento.
Furtado não foi apenas um espectador de faro aguçado que soube interpretar magistralmente a formação econômica do Brasil e sua transformação numa economia industrial. Foi também um protagonista privilegiado que teve uma participação direta em vários acontecimentos importantes da vida política brasileira dos anos 50 e 60. Pode-se dizer que ele estava no lugar certo, no momento certo, pois assistiu à implantação do "Estado de Bem-Estar" na Europa do pós-guerra, onde conheceu as idéias keynesianas de intervenção estatal que iria abraçar com entusiasmo. Viu nascer a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e foi um dos seus principais expoentes. Fez parte da diretoria do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e idealizou a Sudene.
Foi ainda membro destacado dos governos JK, Jânio e Goulart, de quem foi ministro extraordinário do Planejamento. No final de 1957 pediu licença da Cepal e foi para Cambridge (Inglaterra) onde, em três meses, redigiu "Formação Econômica do Brasil" que se tornaria um clássico nas ciências sociais brasileiras, influenciando várias gerações de pensadores até o presente. Em março de 1964 exilou-se primeiro no Chile e depois na França e Inglaterra, onde lecionaria e daria sequência a uma longa produção de livros sobre a economia brasileira e latino-americana, somando mais de 20 títulos traduzidos para vários idiomas.
A partir dos anos 70, quando o "animus" repressor do regime militar arrefeceu, Furtado podia ser encontrado, nos meses de inverno, num pequeno escritório em Perdizes cedido pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, quando estava em férias do seu curso de Teoria e Política do Desenvolvimento, na Universidade de Paris 1. Nos anos 80 teria mais uma experiência no Executivo -porém fora de sua área de especialidade- como ministro da Cultura do governo Sarney.
Para homenagear essa longa trajetória e os seus 70 anos de idade, um grupo de intelectuais da Paraíba organizou um seminário com algumas personagens afinadas com o trabalho de Furtado. O livro "Era da Esperança" resultou num texto ligeiro abrangendo vários assuntos da temática furtadiana sem maiores aprofundamentos, o que, de resto, seria difícil num conjunto de intervenções breves que abordam temas variados. Esse trabalho, no entanto, tem a virtude de fornecer um panorama geral da vida e obra de Furtado, numa leitura rápida e fluente para um leitor que queira um primeiro contato com um dos fundadores da economia política brasileira.
A predominância de pensadores nordestinos puxou a sardinha para a brasa da questão regional, o que não deixa de ser um dos veios mais ricos da contribuição de Furtado. Afinal, foi ele quem, a partir da seca de 1958, conseguiu sensibilizar Juscelino Kubitschek a criar a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) -a primeira grande experiência de planejamento regional- para enfrentar os problemas do Nordeste. Colocado à testa desse monumental empreendimento, Furtado conseguiu revolucionar a maneira como os nordestinos e os brasileiros viam o Nordeste, como muito bem disse Cristovam Buarque, um dos participantes do seminário. Até aquela época a miséria nordestina era vista como um flagelo de Deus e não como obra dos homens e do descaso do Estado. Tratava-se de um problema social e político, o que implicava mudar as estruturas e enfrentar as oligarquias nordestinas, defensoras do status quo.
Um dos grandes méritos de Furtado, enquanto economista e pensador, deve-se ao fato de ele nunca ter reduzido a problemática econômica a uma questão meramente técnica, como querem os partidários do liberalismo econômico, seus eternos adversários. Conforme ressalta Hélio Jaguaribe, o pensamento cepalino já havia compreendido claramente o processo de desenvolvimento como algo que exige condições sóciopolíticas apropriadas, bem como uma prudente intervenção reguladora e orientadora do Estado.
As contribuições dos participantes do seminário foram desiguais, sendo as mais substantivas as de Clóvis Cavalcanti, Tânia Bacelar, Fernando Cardoso Pedrão, Cristovam Buarque, Hélio Jaguaribe e Maria Conceição Tavares, cujas colocações são ricas o suficiente para compensar as poucas passagens mais empoladas do texto, por conta dos políticos presentes. Um ponto importante da obra de Furtado, destacado por vários participantes e, em especial, por Fernando Cardoso Pedrão, é a questão do Estado e do papel dos intelectuais.
Esse é também o ponto central do livro de Reginaldo Moraes, "Celso Furtado, O Subdesenvolvimento e as Idéias da Cepal", que, apesar do título, não faz uma análise abrangente da questão do subdesenvolvimento e do ideário cepalino, mas se debruça sobre os aspectos políticos do projeto desenvolvimentista arquitetado por Prebish, Furtado e outros pensadores latino-americanos. Moraes procura rastrear as linhas de pensamento que desembocaram num modelo de Estado planejador e interventor, capaz de encarnar a racionalidade e sobrepor-se aos interesses de grupos e classes sociais, promovendo as mudanças que não se dariam espontaneamente nas sociedades subdesenvolvidas. Como se constituiu esse ideário que erigiu a intervenção extra-econômica e as mudanças institucionais como o eixo de uma estratégia de transformação da periferia latino-americana? A partir da influência da ONU, da participação de um punhado de economistas europeus, como Ragnar Nurkse e Gunnar Myrdal e sobretudo sob a influência de Keynes e de seus discípulos, conforme nos demonstra Moraes, num quadro sintético, porém razoavelmente completo da gênese do pensamento de Furtado e da Cepal.
Existem algumas passagens dúbias no livro de Moraes como, por exemplo, aquela que assinala uma certa ambiguidade no discurso da Cepal. Este defende, por um lado, a intervenção do Estado e a planificação e, ao mesmo tempo, faz uma declaração de fé ortodoxa enaltecendo as virtudes do mercado e da livre empresa. Não creio que a Cepal estivesse fazendo uma média com os liberais (que afinal controlavam a ONU à qual ela estava subordinada) e tentando ocultar os antagonismos de interesses. O fato é que uma parte dos pensadores da Cepal e mesmo dos economistas escandinavos acreditavam que essa intervenção estatal seria provisória, durando apenas até se concretizar a industrialização desses países, quando então as forças de mercado poderiam caminhar com suas próprias pernas.
A contribuição mais importante do livro de Moraes é a de mostrar a influência do positivismo e da sociologia de Karl Mannheim sobre esses personagens. Se os grupos sociais ou mesmo as elites dominantes, tomados por seus interesses imediatos, não conseguem vislumbrar o caminho para romper o círculo vicioso do atraso e subdesenvolvimento, somente o Estado, comandado por uma elite de intelectuais independentes e dotados de racionalidade, pode se sobrepor a esses interesses individuais e alcançar os interesses coletivos. E aqui, ressalta Moraes, Furtado afasta-se definitivamente do marxismo do qual, aliás, nunca esteve próximo.
Os intelectuais são, sem dúvida, a categoria social que possui menores vínculos com interesses econômicos específicos e podem pairar acima das classes principais do capitalismo e de seus antagonismos. Entretanto, é muita ingenuidade pensar que as elites dominantes entregarão o comando do Estado nas mãos de um grupo de intelectuais iluminados que não estejam comprometidos com seus interesses. Daí a conclusão de Moraes de que as teorias desenvolvimentistas apelavam para uma espécie de infantilização das sociedades que precisariam ser educadas pelo Estado.
Ao final do seminário da Paraíba, Furtado disse estar desanimado com o rumo que as coisas vinham tomando no Brasil e no mundo. Pudera, quase 40 anos depois da criação da Sudene, o Nordeste continua miserável e os liberais estão de volta, desmanchando algumas coisas que o desenvolvimentismo conseguiu realizar. Será que não está na hora de criar o neodesenvolvimentismo?

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