São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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Outros mundos

RONALDO VAINFAS

Possessões Maravilhosas
Stephen Greenblatt
Tradução: Gilson César Cardoso
EDUSP, 208 págs.

Possessões Maravilhosas" é livro que resulta de uma série de conferências realizadas por Stephen Greenblatt em Oxford e Chicago, publicadas originalmente em 1991. Apesar de não ser historiador de ofício (é professor de literatura inglesa na Universidade da Califórnia), Greenblatt incursiona aqui no universo cultural dos descobrimentos americanos dos séculos 15 e 16 e no contato de culturas deles resultantes. Contam, porém, a seu favor, os numerosos estudos feitos sobre o Renascimento inglês no campo da literatura, especialidade capaz de lhe garantir notável familiaridade com o universo mental da época estudada.
As "maravilhosas possessões" de que trata o autor derivam, antes de tudo, de algumas narrativas de viagem ao Novo Mundo e problematizam, fundamentalmente, as formas pelas quais os europeus representaram, capturaram e assimilaram o outro cultural. O mais interessante -e talvez nisso resida o maior valor do livro- é o método utilizado no estudo das narrativas selecionadas. Greenblatt analisa os textos a partir do que chama de "anedotas", dos relatos acerca de situações equivocadas e desconcertantes que pontuaram os encontros e desencontros entre europeus e índios. Greenblatt focaliza o que os franceses chamam de "petites histoires" em oposição ao "grand récit", procedimento análogo ao que o italiano Carlo Ginzburg utiliza na decifração dos processos inquisitoriais: a leitura de sinais e indícios aparentemente periféricos.
O alentado primeiro capítulo não trata dos descobrimentos reais, mas das viagens imaginárias, no caso das "Viagens de Mandeville", texto do século 14 que tratava dos "outros mundos", das terras do Índico, dos perigos de "finisterras" desconhecidas, de Gog e Magog, do paraíso terrestre -temas e tópicos que iriam povoar o universo mental dos descobrimentos atlânticos. Greenblatt estuda John de Mandeville para "entender Colombo", mas acaba por fornecer importantes elementos para a compreensão de como o Ocidente pensava e representava o mundo desconhecido e os povos incógnitos antes de deflagrar a expansão atlântica.
Dedica-se, em seguida, ao estudo de Colombo, assunto do capítulo segundo que dá nome ao livro. É nele que se tornam nítidas as noções de possessão e maravilhoso. Possessão diz respeito às apropriações culturais, à tradução dos gestos e até da língua dos nativos à luz das expectativas européias, ancoradas naturalmente na bagagem cultural dos "descobridores". Maravilhoso tem a ver com encantamento, surpresa paradoxal diante de achamentos de sonhos antigos. Mas tem a ver também com estranhamento e até repulsa do que se julga bizarro por não se enquadrar facilmente no sistema cognitivo colonizador, cristão e ocidental.
Greenblatt examina exaustivamente os textos de Colombo -as cartas, o diário de bordo-, tomando-os como exemplo destas possessões e desacertos. A bem da verdade, não avança muito em relação ao que outros escreveram sobre o assunto, a exemplo de Tzvetan Todorov, exceto pelo que examina no capítulo terceiro, que retoma as visões de Colombo, mas envereda por narrativas distintas: Cartier, Frobisher, Verrazzano e outros viajantes. Mas o problema central da alteridade, a "linguagem do rapto", o "Colombo infatigável leitor de signos" -nada disso é propriamente inovador, embora certos detalhes dos relatos e a própria qualidade do texto de Greenblatt sustentem o livro.
Menos defensável é, porém, a relativa indiferença do autor face à tragédia dos descobrimentos e conquistas -o que não ocorre no já referido Todorov. Para Greenblatt, o processo de conquista do Novo Mundo parece reduzir-se a atos linguísticos, reiteração de formalismos e tradução de signos. Numa visão de conjunto, o livro passa a idéia de uma conquista identificada à deformação cultural do outro, muitas vezes malograda, admite o autor, pela frustração das motivações ou mesmo pela inversão do processo de dominação cultural. Mas é, de todo modo, uma conquista asséptica, quase incruenta.
O capítulo quarto, este sim, traz contribuição significativa, nem tanto pelo conteúdo das análises, senão pelo enquadramento do objeto. Problematiza bem o conceito de cultura em movimento, admitindo-a como por si mesma instável, "modos mediadores de experiência modeladora". Greenblatt sistematiza com acuidade -e, felizmente, clareza- uma visão da complexidade das circulações ou circularidades culturais -acomodações, assimilações e representações recíprocas entre universos culturais distintos. E aprofunda, à guisa de demonstração, dois bons exemplos: o de Malinche, a amante indígena de Cortez que decifrou o mundo asteca para os conquistadores, e o não menos célebre Montaigne, filósofo que chegou, no limite, a compreender o canibalismo ameríndio.
Entre Malinche e Montaigne, dois fortíssimos elementos de convergência: antes de tudo, a função de intermediários culturais -ela para ajudar a destruir, ele para ajudar a compreender; e, em segundo lugar, a renúncia de si, renúncia da própria cultura em favor da alheia, com todas as limitações inerentes a um processo deste tipo.
O mais é ler o livro que, com densidade teórica e qualidade narrativa, trata de temáticas essenciais: o encontro da cristandade com os incógnitos mundos americanos; a importância das "petites histoires" como fontes de investigação; as renúncias, circularidades e mediações que fazem da cultura um campo privilegiado da história.

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