São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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Um esquecido

PAULO VENANCIO FILHO

Oswaldo Goeldi/Um Auto-Retrato
Noemi Silva Ribeiro e Sergio Laks
Catálogo da Exposição Comemorativa do Centenário de Nascimento 1895-1961
Centro Cultural Banco do Brasil, 216 págs.
R$ 120,00

Goeldi: Modernidade Extraviada
Sheila Cabo
Diadorim/Adesa, 172 págs.
R$ 20,00

Bandeira-Goeldi/Noite Morta
Nuno Ramos, Paulo Pasta, Fábio Miguez
Catálogo da Exposição "Bandeira Goeldi/Noite Morta"
Conjunto Cultural da Caixa Econômica Federal, 42 págs.
Distribuição gratuita

Os "esquecidos", assim nos referimos àqueles artistas que ficaram ou estão numa situação de descaso incompatível com sua relevância. Pouco se indaga, não sobre a justiça, mas sobre a propriedade e conveniência desse descaso. Até há pouco Goeldi era um artista quase desconhecido. Ainda é. Goeldi foi, na verdade, "justamente" esquecido. Esquecido pela sua poética incômoda, sombria, quase desesperada. Pela sua visão lúcida e clara de uma ordem social precocemente arruinada; o paraíso tropical pelo avesso, agônico, opressivo e injusto. Pela história de homens anônimos que acabam sós num beco, entre móveis jogados na rua e cães vadios, observados por urubus indiferentes. Triste existência de uma gente insolidária, sofrida, de um destino oco lançado ao vento. Goeldi foi o "outro", o "homem subterrâneo" do nosso modernismo solar, edênico, otimista, que tanto dominou -e por que não?-, deformou nossas mentalidades. Mais e mais, o mundo que vislumbrou, ampliado e banalizado pela complacência com a injustiça, surge, para nós, todos os dias, nas ruas e esquinas das grandes cidades brasileiras. O beco afinal triunfou sobre a cidade.
Logo, pois, seria uma impropriedade festejar o centenário do nosso maior desenhista e gravador. À parte as mostras comemorativas, pouco se comentou. Goeldi continua sendo um problema; não é ainda um assunto. Continua um incômodo, um mal-estar. O que se somou à fortuna crítica goeldiana no seu centenário? Algumas coisas de importância e que passaram em branco, quase incógnitas. Até então, só tínhamos dois livros já esgotados -o de Aníbal Machado (1955) e o de José Maria dos Reis Júnior (1966)- e o catálogo organizado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ).
Junto com os eventos que celebram o centenário de Goeldi foram lançadas três publicações, que, de maneiras diversas, vieram se juntar a sua escassa bibliografia: "Oswaldo Goeldi - Um Auto-Retrato" é o catálogo da mostra recente (26/7-1º/10/95) de mais de 300 trabalhos do artista; "Goeldi: Modernidade Extraviada" é um ensaio crítico de Sheila Cabo, originalmente tese de mestrado do curso de especialização em arte e arquitetura no Brasil, da PUC/RJ, e "Bandeira-Goeldi/Noite Morta", catálogo de uma mostra apresentada ano passado em Curitiba e, agora, na Caixa Econômica Federal, no Rio de Janeiro.
O primeiro catálogo toma a forma da homenagem oficial, tradicional e convencional. O próprio título já é contraditório: como é possível fazer um auto-retrato do outro? Se não é Goeldi que se retrata, quem está em seu lugar para se auto-retratar? Ambiguidades próprias ao enquadramento do artista numa visão convencional. Tradição e convenção implicam não só um tipo de mentalidade, mas também uma série de regras, normas e convenções de orientação e entendimento universais. Entre nós, a primeira costuma prevalecer sobre a última. Ou seja, o arbítrio nega a norma em nome de uma tradição da qual mantém só o espírito conservador.
Pois é uma sensação de desproporção e desequilíbrio que domina este catálogo. Desde o kitsch desagradável da capa prateada à irregularidade de escala das imagens, está presente uma desproporção dos objetivos. Assim, o que deveria ser maior é menor e vice-versa (um dos desenhos, "Quintal", pág. 90, tem até a sua reprodução cortada). Do mesmo modo, nota-se a desmedida ênfase nas palavras emblemáticas de Goeldi que vêm no frontispício: "Nunca sacrifiquei a qualquer modismo o meu próprio eu/ Caminhada dura mas que vale todos os sacrifícios" -está presente uma desproporção dos objetivos. São palavras ditas por um expressionista autêntico, sem tom de lamento, mas que, sem a devida análise, mistificam a relação entre o ascetismo ético puritano -que dramatiza toda a poética expressionista- e o processo de criação artística. Goeldi cabe mal na moldura deste catálogo. Suas obras estão lá, mas não seu espírito que foi mitificado. A exemplaridade edificante que se buscou, adequada à comemoração, não ressoa na obra do artista.
Em geral as datas comemorativas são boas ocasiões para serem desperdiçadas ou mal-aproveitadas. Infelizmente, este catálogo ficou aquém das expectativas que a obra de Goeldi exige e, pelo preço de R$ 120,00, muito além das nossas possibilidades econômicas. Ainda assim, é a publicação que, até agora, reúne o maior número de desenhos e gravuras do artista, em especial os trabalhos de juventude, inéditos, e a importante correspondência que Goeldi manteve com Alfred Kubim, a grande admiração artística de toda sua vida. Apesar dos desacertos, é um documento visual de valor.
A perspectiva do livro de Sheila Cabo é bem diversa; efetua uma análise em extensão e profundidade, de teor ensaístico. Aqui, Goeldi não é um evento a se celebrar, mas um problema. Livros como os de Machado e Reis Júnior partiam da relação de amizade, da convivência com o artista, o que turvava o ponto de vista crítico. Eram documentos de intimidade com a obra e com o artista, mas não traziam a distância própria à análise crítica. E faltava-lhes o conhecimento específico e atualizado da problemática da arte moderna. O livro de Sheila é o primeiro -no caso de Goeldi- que corrige esta tendência, tão comum nos textos sobre arte e artistas, de sobrepor idiossincrasias à análise da obra. Aqui, o trabalho de Goeldi está, rigorosamente, em questão; o livro conjuga intimidade com a obra e distância teórica. O resultado é um estudo que constrói uma visão coordenada da poética goeldiana; suas origens no expressionismo alemão e a sua conflituada adequação a uma realidade outra, tropical e periférica. Isso visto dentro de um quadro teórico pertinente e articulado, inédito quanto a Goeldi.
Como se sabe foi a cultura literária que dominou -e sob muitos aspectos ainda domina- a vida intelectual brasileira. Nela as artes plásticas sempre ocuparam uma posição lateral e desarticulada. Daí o frequente descaso, ou a ignorância até, do homem culto brasileiro para com o fato plástico. A originalidade de "Bandeira-Goeldi/Noite Morta" está em tomar a contramão dessa relação ou em obter uma ponderação mais equilibrada e inteligente entre os termos. Mais que um equilíbrio, o catálogo mostra uma intensa afinidade entre um aspecto da poética de Bandeira e o mundo goeldiano. Goeldi foi um excepcional ilustrador, de Dostoiévski principalmente, Raul Bopp e Cassiano Ricardo, entre outros. Nesse catálogo, são os poemas de Bandeira que "ilustram" Goeldi. Com a provável exceção dos poemas a partir de A.F. Schmidt, banhados de uma religiosidade católica estranha a Goeldi, temos em "Noite Morta", "Poema do Beco" e "O Bicho" a mesma economia trágica, sintética, do preto-e-branco de Goeldi. Um exemplo é "Poema Tirado de Uma Notícia de Jornal": "João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número/ Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro/ Bebeu/ Cantou/ Dançou/ Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado". Esse desespero rival e mais potente que a alegria, agônico e solitário -anônimo na morte-, torna-se ainda mais absurdo, no ambiente da felicidade, na cidade das mais belas paisagens, da mais bela lagoa para se suicidar.
"Et in Arcadia Ego", a frase latina "A morte existe mesmo na Arcádia", segundo Panofsky, também está gravada no suposto paraíso tropical. No trabalho de Bandeira e no de Goeldi poreja a banalidade misteriosa da interseção da vida e da morte. Goeldi afunda no absurdo íntimo, prosaico e luminoso dos trópicos, enquanto, em Bandeira, como diz o catálogo, "a memória, o afeto e a elegia oferecem uma redenção a esse duro fardo".
Com essas publicações, Goeldi torna-se mais visível. E, assim como encontramos sua afinidade com Bandeira -poderia ser também com um certo Drummond, um certo Jorge de Lima, entre outros-, poderemos vir a encontrá-la em algum canto, em algum beco mal iluminado por um lampião torto, dentro de nós mesmos.

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