São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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O pintor da destruição

SÔNIA SALZTEIN

Piet Mondrian/ 1872-1944
Exposição: Nova Iorque, The Museum of Modern Art (1/out/1995-23/jan/1996)
Catálogo: Yve-Alain Bois, Joop Joosten, Angelica Z. Rudenstine, Hans Janssen, "Piet Mondrian/ 1872-1944", Nova York, The Museum of Modern Art/Milano,
Leonardo Arte, 400 págs.
US$ 32,00

Mondrian, um iconoclasta, assim o historiador e crítico de arte Y. A. Bois nos revela o artista, a contrapelo da mitologia trivial que historicamente o envolve, apresentando-o como expoente de um formalismo ascético, restrito à severa modulação geométrica. A imagem do pintor -que sistematicamente destrói suas próprias premissas- é desenvolvida no catálogo de uma ampla mostra, em que o ensaio de Y. A. Bois surge como o carro-chefe, em razão de sua novidade interpretativa.
A idéia cristalizada da obra é esta: na gênese, uma série de paisagens naturalistas que evoluem lentamente para uma espacialidade moderna; depois, rápido aprendizado cubista (1911-13) mediado pelo contato com a obra de Cézanne, que leva à série "Pier and Ocean" (1914-15). Ocorre aqui pela primeira vez a redução do motivo naturalista a um conjunto oscilante de sinais horizontais e verticais, que iria culminar na primeira tela neoplasticista (1) de Mondrian (1920). Desta derivaria por fim a fisionomia definitiva da obra: uma estrutura matricial de linhas pretas horizontais e verticais, de planos de cores primárias, que será reposta, no curso do trabalho, inúmeras de variações.
Daí ao minimalismo e às ortodoxias formalistas contemporâneas parece um passo natural, inscrito na teleologia da obra. Entretanto, o que surpreende agradavelmente no texto de Y. A. Bois, é que a uma tal imagem doutrinária -que torna o trabalho de Mondrian o desenvolvimento intelectual e monótono das prescrições de um espírito platônico-, o crítico contrapõe um experimentalismo radical. Mas, antes de toda discussão, importaria notar que o texto tem, de saída, o mérito de propor a (obliterada) tarefa de renovação da reflexão teórica e de resgatar a atualidade de uma obra canonizada, à mercê de burocráticas mostras históricas, rotineiras nos grandes museus norte-americanos e europeus.
Além de deslocar toda uma tradição interpretativa, o ensaio de Y. A. Bois descobre o significado contemporâneo de um trabalho que, sendo a descrição exemplar de um pensamento que desde o início se autocompreendeu como moderno, poderia fornecer ao crítico-curador a ocasião mais que perfeita para um discurso sobre o apogeu e a derrocada da consciência moderna e seus corolários: o sujeito universal, a razão crítica etc.
Nesses termos, Y. A. Bois, combinando rigor acadêmico e liberdade intelectual -fórmula rara de se encontrar no ambiente semi-empresarial e altamente profissionalizado dos grandes museus- e fugindo aos clichês "pós-modernos", extrai, de um artista suspeito de "ortodoxia formal", uma premente noção de forma, em tudo pertinente à situação contemporânea.
O crítico revela a trajetória intrinsecamente processual da pintura de Mondrian. E mostra como, graças a uma disposição genética para a experiência, a obra final do artista (realizada entre o início dos anos 30 e o fim da vida em 44) pôde liquidar as suas próprias premissas (da teoria neoplasticista, pacientemente elaborada nos 30 anos precedentes), arrastando o pintor numa aventura completamente heterodoxa da forma.
A "demolição inflexível, um a um, dos pressupostos ontológicos do neoplasticismo" (pág. 357), implicaria, para Mondrian, desarticular a clássica "grade" -entrevista na pintura de Cézanne, radicalizada depois no cubismo de Picasso e Braque e, por fim, sintetizada como princípio de autonomia formal em sua própria pintura. Nas palavras de Y. A. Bois: "Mondrian primeiro destruíra a identidade do plano por meio do entrecruzamento das linhas; depois, a identidade das linhas por meio de sua repetição. Começa agora a destruir a própria identidade da superfície da pintura, o que ocorre através da superposição das linhas (...). O único princípio básico ao qual ele não está preparado para renunciar diz respeito à natureza planar ('flatness') da 'superfície pictórica': se a pintura é a única arte capaz de ser puramente abstrata (...), é porque é plana, e assim completamente diversa do mundo que nos cerca. Em Nova York ele insiste, mais do que nunca, na existência de sua pintura como um objeto opaco e impermeável (...)"(págs. 360-1).
É importante notar, nestes passos decisivos do percurso de Mondrian, sua implacável exigência de expurgar todo antropomorfismo, de eliminar todo resíduo projetivo da obra. Exigência que confere à sua experiência da forma o sentido de um verdadeiro inconformismo ético (a arte não mimetizaria construtivamente o mundo, nem poderia ser concebida como um seu predicado; ela seria irrecorrivelmente diversa dele). E Mondrian assim procedia, arriscando implodir a própria obra.
O trabalho de destruição de categorias pictóricas (plano, cor, espaço) e a idéia de um vazio constituinte -fenomenologicamente manifesto no atrito incessante de uma pluralidade de forças relacionais (horizontais e verticais)- foram uma constante no trabalho de Mondrian. E propiciam uma instigante interface com o pensamento contemporâneo: confronte-se a negatividade radical e produtiva da obra (que põe como condição de cada trabalho a negação da precedente), com a espécie de negação adiada e performática -que a arte contemporânea vem exercendo desde a arte povera.
Neste sentido, o período que Y. A. Bois vê como culminante na obra de Mondrian (dos anos 30 ao final da carrreira) não poderá ser também concebido como o momento problemático em que vemos estilhaçar-se o paradigma moderno da forma? Não irrompem aí certos problemas abertos até hoje -o que desmente a historicização precoce desta obra e daquelas de outros "mestres modernos"?
A propósito, recorde-se a profunda admiração que Hélio Oiticica (1937-80) nutria por Mondrian, expressa em várias de suas formulações teóricas. Nessa medida, uma atitude a um só tempo construtiva e desconstrutiva -como a que norteia o trabalho de Hélio- pode ser vista como um desdobramento contemporâneo da experiência radical e limiar da forma imaginada por Mondrian.
Para retomarmos a questão do vazio potencial a que o artista holandês empurrara sua pintura, é extraordinário acompanhar tal obra -desde sempre avessa a todo confessionalismo- confrontar-se, afinal, com um campo fundamentalmente relativizado (no qual emerge a figura de um sujeito plural e transitório). Assim, as telas de 1932 em diante, conforme aponta Y. A. Bois, dissolvem, não apenas a relação figura/fundo, não apenas o centro e o objeto da pintura (tarefa de etapas anteriores), mas desta feita aquilo que restara como último reduto naturalista do trabalho: a própria superfície da pintura. Esta é doravante levada a permanente flutuação, na qual a multiplicidade de linhas pretas e o basculamento dos planos coloridos tornam-se grandezas puramente relacionais. Ou seja, grandezas que já não encontram um espaço isotrópico, que já não podem deslocar-se aí como objetos sempre iguais a si mesmos.
É neste momento de tensão suprema -no ano de 1944-, quando o pintor decidia refazer partes de "Victory Boogie Woogie", que se interrompe a trajetória de Mondrian. Tal pintura serve também de ponto de chegada à abordagem do crítico, numa formidável coincidência epistemológica entre o quadro interpretativo demonstrado e seu objeto, o qual terá completado uma rotação perfeita de seu movimento produtivo. A morte do artista, simbolicamente, garantiria o desígnio de negatividade que inspirara todo o seu percurso, mantendo, assim, a obra inacabada e marcando-lhe o caráter processual.

NOTA
(1) O termo "neoplasticismo" surge no primeiro texto publicado de Mondrian (1917). Nele já se esboça o projeto estético, que o absorverá a vida inteira, perseguindo uma renovação generalizada, requerida pela civilização moderna, e que caberia à arte iniciar. Assim, Mondrian viria atribuir à arte abstrata tanto uma potência de renovação psicológica, interior -visando à perpétua superação do particular (isto é, a linha horizontal) em direção ao universal (a linha vertical)- quanto uma potência "macrocósmica", capaz de levar à transformação social ampla.

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