São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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A sedução da janela

LUIS A. S. MUNARI

O Desenho da Janela
Luís Antônio Jorge Anna Blume, 160 págs.
R$ 15,00

A janela é o tema central do livro de L. A. Jorge que, por seu pequeno formato, sugere a impressão imediata de um objeto precioso, o que não se desfaz ao longo da leitura, pois seduz o olhar e o entendimento. Já na introdução, o autor adverte que a janela, como elemento arquitetônico, foi escolhida porque, em função da complexidade dos problemas que implica, aponta para um trabalho extremamente compensador.
Assim, o recorte da janela, como tema, é aparentemente simples, mas indica em sua composição a possibilidade de apontar para toda a arquitetura, funcionando como um código, que desvenda o que a cerca. A janela, pois, parece incorporar em sua configuração os problemas da arquitetura, que a comporta, surgindo como uma metonímia em relação ao edifício.
Dois caminhos delineiam-se para apreender a janela: um refere-se a seus processos de significação, enquanto o outro conduz ao objeto inserido na linguagem da arquitetura. A significação liga-se à sua origem, relatando como se instaura no plano da parede. A janela surge, então, como "O Olho da Arquitetura", nome do primeiro capítulo do livro, e constrói uma metáfora, passando de "coisa vista" para "aquilo que vê".
Etimologicamente, a janela é uma diminuição da porta, o que a obriga a uma mudança física e também qualitativa, já que não existe mais para deixar passar pessoas, mas para dar passagem a seus olhares, ao ar e à luz. Assim, se a arquitetura provém do espaço contido, segundo Bruno Zevi, em "Saber Ver a Arquitetura", as paredes contam sua história através da luz, que as invade, e que, somente pela configuração das janelas, pode se tornar apropriada, dominada e manipulada. São as janelas, enfim, que permitem a lenta conquista do espaço, iluminando-o interiormente e o fazendo portador de sentido.
Antes da janela, a casa era iluminada pelo pátio interno (peristilo), que se comunicava com todos os cômodos, abrindo-os aos céus, à luz e ao ar, mas sem a capacidade de conduzir o olhar à cidade. Isto só ocorrerá a partir do surgimento dos terraços do último andar das casas italianas (as "loggie"), nos séculos 14 e 15, dando início àquilo que pode ser denominado de "cultura de investigação mútua".
A comunicação com a rua, que a casa passa a oferecer, torna-se, neste período, um grande divertimento e, ao mesmo tempo, uma tentação. Afinal, é através deste canal que se espia, olha-se, conversa-se, vê-se e se é visto, ficando instaurado o sentido do olhar, que entra ou que sai.
Mas somente com a introdução da janela como elemento arquitetônico é que a cidade fica constantemente ao alcance do olhar. O observador toma-a como um texto, no qual é possível observar sem ser observado, já que permite o ocultamento e a proteção da investigação alheia. Esta intenção de ver sem ser visto revela-se ora no efeito refletor do vidro, ora na fresta veneziana, fazendo com que a janela se torne também um signo da infidelidade, através do qual qualquer um e todos podem olhar.
Quando se expõe, no entanto, o sujeito é ativo, e, portanto, mostra-se disposto a participar da vida romanesca da cidade, o que origina, então, os diversos tipos de observadores: o curioso, o vigilante, o contemplativo ou o amoroso, que se alternam de acordo com a circunstância. A janela enquadra a visão e, desta forma, delimita seu espaço como uma moldura.
A partir de 1400, a janela, enquanto corte na pirâmide visual, traz um novo universo de investigação para a pintura, e passa a ser a abertura para um espaço, que, na época, se pretendia objetivado. É através dela que flui o olhar representativo de uma maneira estetizada de apreciar o universo e, por decorrência, de construir um novo espaço. Assim, a janela, que existe como elemento construído, enquadra a própria arquitetura para mostrar a profundidade na pintura, criando um espaço imaginário, que é o signo da associação entre pintura e arquitetura.
A matematização do espaço na pintura permite transportar três dimensões para duas, garantindo a perfeição estética ao representado, mas, ao mesmo tempo, tornando indiferenciados o espaço real da arquitetura e o imaginário da pintura. A janela transforma-se, desta maneira, no modelo de apreensão do espaço pictural, pois tudo o que é visto em um quadro, parece ser visto através dela.
Na arquitetura renascentista, a janela multiplica-se e se enriquece com novos elementos, passando a ser guarnecida pela edícula, uma espécie de nicho, que reproduz minimamente todo o edifício e a este se refere metonimicamente por conter as principais formas decorativas de toda a fachada onde existe. A partir deste ponto, a janela adquire eloquência, pois se torna capaz de formular a síntese dos elementos arquitetônicos esparsos em um edifício.
No terceiro capítulo, Jorge mostra como Bramante constrói, no "Tempieto", em Roma, uma espécie de máquina para o olho, já que neste pequeno templo, uma construção circular, pode-se observar uma série de jogos para a visão. É como se, deliberadamente, o arquiteto procurasse demonstrar que o ato de ver é também o ato de conhecer. A análise desta obra arquitetônica suscita interesse e é reveladora no que se refere ao desempenho e à importância das janelas, que, nesta construção, rivalizam com portas e altar. Deixemos, porém, ao leitor o exercício da curiosidade em busca dos detalhes deste pequeno templo.
A seguir, o autor alerta que é somente a partir de Michelangelo que a janela, enquanto molde, passa a inspirar um outro tipo de abordagem. Ao desenhar suas edículas, o escultor cria a impressão de uma falsa janela, pois o jogo de ilusão de profundidade gera a idéia de espacialização, que parece fazer respirar a arquitetura num movimento constante de expansão e contração. Isto conduz a janela à gradativa aquisição de uma identidade própria, que é finalmente conquistada com Guarani, que, ao trabalhar as fachadas pulsantes, liberta-a e a faz comandar a composição da fachada.
Assim, a janela, que a princípio significa apenas um momento de pausa na fachada barroca, passa a ser capaz de deter o olhar com sua composição modulada, livre das formas geométricas retangulares e esquecida de sua origem nos vãos entre as colunas da construção.
Como elemento vazado, é um signo e, simultaneamente, um texto, que permite uma dupla leitura determinada pela posição de quem vê: uma se está dentro, e outra se está fora. É justamente este caráter de duplicidade que confere à janela, de um lado, sua complexidade e, de outro, a sua poética, fazendo-a surgir como uma abertura para a imaginação e, ao mesmo tempo, como um serviço à inteligibilidade do espaço, que ilumina, desvenda e descortina: a fala silenciosa do arquiteto.
Logo ao iniciar seu texto, Jorge faz a análise etimológica de "janela", mas deixa de lado palavras, como a latina "fenestra" ou a grega "thyris", e exerce uma escolha deliberada, pois, se abdica da extensão histórica do tema, ganha em precisão e concisão. Afirma também que "a janela é uma invenção moderna. Sua inserção na linguagem da arquitetura ocorre com o Renascimento (...)" (pág. 149), deixando claro que a janela vista atualmente na paisagem urbana tem sua origem e significado a partir do século 15.
É texto para especialistas. Entretanto, o modo apaixonado e sedutor com que o tema é trabalhado, aliado a uma linguagem clara, o faz merecer uma divulgação mais ampla, já que Jorge explica a maioria das palavras técnicas e põe o leitor em contato íntimo com a terminologia arquitetônica. Neste sentido, porém, deve ser feita uma pequena observação: poderiam ter sido explicadas as palavras picnostilo, sístilo, êustilo, diástilo e areostilo. Segundo Perrault, em sua tradução de Vitrúvio, estas palavras significam respectivamente: colunas juntas, colunas aproximadas, colunas bem colocadas, colunas distantes e colunas raras.
Outra observação refere-se ao pequeno templo de Bramante, cabendo uma pergunta ao autor. A separação entre colunas neste templo é de 3 por 1, o que coloca este vão na categoria de diástilo. Vitrúvio, no Livro 3, capítulo 3, recomenda o uso, em entradas e saídas de edifícios, de um vão entre colunas de 3 por 1. Afirma ainda, porém, que o melhor espaçamento, o êustilo, seja de 2,25 por 1, o que deve ser mantido em toda a edificação. A questão é: no Tempieto, Bramante seguiu a recomendação de Vitrúvio no espaçamento das colunas, ou simplesmente chegou a isto determinado pelas proporções do edifício?
"O Desenho da Janela" é texto persuasivo, mais do que sedutor, pois agrada e aconselha sem artifícios.

LUIS A.S. MUNARI é professor de história da arte da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP)

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