São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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Da águia ao tucano

EMIR SADER
DA ÁGUIA AO TUCANO

Mapping the West European Left
Perry Anderson (organizador)
Verso, 276 págs.
12,95 libras

Em artigo publicado recentemente no caderno "Mais", da Folha, Roberto Schwarz procura retomar a trajetória da intelectualidade paulista nos anos 60, a partir dos seminários de "O Capital". Entre os autores que tiveram forte presença na esquerda da época, ele chega a citar Caio Prado Jr, com justiça, e Fernando Henrique Cardoso. Na realidade, entre os autores que influenciaram, na época, as forças de esquerda, estavam, além de Caio Prado Jr., Ruy Mauro Marini, Gramsci, Isaac Deutscher e Perry Anderson. As obras de FHC e de Maria Sylvia de Carvalho Franco tiveram seu peso limitado ao meio universitário.
Perry Anderson continuou a exercer essa influência, seja mediante seus grandes balanços históricos, publicados no Brasil pela ed. Brasiliense -"Passagens da Antiguidade ao Feudalismo", "Linhagens do Estado Absolutista", "Considerações sobre o Marxismo Ocidental", "A Crise do Marxismo"-, seja em outros textos, de balanço das obras de autores específicos, como Gramsci, Bobbio, Berman ou em "O Fim da História", publicado recentemente pela Jorge Zahar.
Em seu último livro, Perry Anderson faz um balanço da esquerda na Europa Ocidental, apoiado em análises que vão da Escandinávia (Suécia, Noruega e Dinamarca) até o sul do continente (Espanha, Itália), passando pela Alemanha, pela Inglaterra e pela França. Os artigos foram publicados na "New Left Review", revista que Anderson dirigiu durante 25 anos e da qual continua a ser membro do comitê editorial. O livro faz parte da recente coleção da Verso, editora ligada à "New Left Review". "Mapeando", que realiza balanços de temas clássicos do pensamento social nas últimas décadas, como os de ideologia, organizado por Slavoj Zizek, e nacionalismo, feito por Benedict Anderson.
Num século que se anunciava como o do socialismo e que termina com a "débâcle" das primeiras formas históricas de existência dos regimes anticapitalistas, o roteiro traçado por Marx faz dirigir os olhos menos para o que ocorreu dentro da URSS, país periférico do capitalismo, do que para o que se passou nos seus centros, isto é, na Europa Ocidental, no Japão e nos EUA.
Tradicionalmente, diz Anderson, a literatura sobre a esquerda européia tendia a ser dividida em duas categorias: estudos dos partidos clássicos da social-democracia no Norte do continente e trabalhos sobre os partidos comunistas -ou, mais recentemente, sobre os euro-socialistas, no Sul. Essa distinção foi perdendo sentido pelas transformações ideológicas desses partidos e até mesmo pelas mudanças na correlação de forças entre eles. Qualquer análise atual obrigatoriamente tem que ser feita sobre o conjunto da esquerda.
Por outro lado, grande parte dos estudos atuais sobre os partidos e movimentos políticos é produto de um tipo de abordagem da ciência política moderna que se especializou em pesquisas quantitativas e correlações estatísticas. Ainda que indispensáveis para a compreensão dos sistemas eleitorais, dos padrões de voto ou das funções das coalizões, este tipo de análise tende a colocar menos ênfase nas dinâmicas de longo prazo dos conflitos sociais e ideológicos. Os artigos selecionados, ao contrário, buscam reconstruir o desenvolvimento da esquerda em cada país, mediante um enfoque histórico com retomada de suas raízes no tempo. Tendo surgido em momentos fundamentais de períodos históricos -como a Libertação na Itália, a Guerra Fria na Alemanha, a 5ª República na França, os partidos são considerados como atores coletivos que realizam escolhas discricionárias. Mais do que reduzir seu patamar a qualquer destino previamente definido, uma retrospectiva histórica permite explicar opções que não foram realizadas, oportunidades perdidas, assim como erros evitados.
Cada um à sua maneira, os oito trabalhos selecionados seguem a proposta de Gramsci, segundo a qual "escrever a história de um partido é escrever a história geral de um país de um ponto de vista monográfico". O que significa não apenas situar a evolução das forças políticas no marco da formação social em questão, como enfocar igualmente a direita, como referência antagônica que configura o cenário político e ideológico.
Capacidade de direção macroeconômica, unificação social, justiça eleitoral, enraizamento popular, modernidade cultural -são alguns dos principais problemas com que se defrontou a esquerda européia, enquanto se operavam duas transformações estruturais nas condições em que ela atuava. Em primeiro lugar, uma fragmentação de suas bases sociais. Se continuou a aumentar incessantemente o trabalho assalariado, ao mesmo tempo em que se reduziam quantitativamente os pequenos proprietários rurais e urbanos e as mulheres entravam maciçamente no mercado de trabalho, as divisões dentro da força de trabalho se acentuaram. Às diferenças clássicas entre trabalho manual e intelectual, se somaram heterogeneidades de idade -cartaz de manifestação de jovens sem emprego na França dizia: "Papai, consegui um emprego: o teu", de gênero e de nacionalidade -com a imigração-, quando não étnica, a partir do momento em que esta diferença transforma em desigualdade e preconceito.
Os dados são reveladores: o trabalho manual se reduziu para 1/4 da população economicamente ativa; cerca de 1/3 de vida dos adultos é vivida agora depois de sua aposentadoria; o número total de trabalhadores imigrantes originários da Ásia, da África e do Caribe, na Europa, é de cerca de 13 milhões, sendo que na Alemanha, na França, na Inglaterra, na Suécia, e na Bélgica, 10% ou mais das crianças na escola são de origem não-européia.
O outro elemento modificado do terreno em que atua a esquerda européia é o das políticas monetárias e de ajuste fiscal, isto é, aquele com que se deu a conversão ideológica da social-democracia ao neoliberalismo. No final de uma trajetória ideológica singular, Anderson enfatiza, houve um tempo, na fundação da Segunda Internacional, em que a social-democracia se propunha a derrubada do capitalismo. Em seguida, o caminho passou a ser o das reformas parciais na passagem do capitalismo ao socialismo, até que, finalmente, ela se casou com o pleno emprego e o Estado de bem-estar social, contentando-se com democratizar o capitalismo.
Para uma corrente política cujo sucesso residiu no pleno emprego, na generalização dos serviços sociais do Estado, na universalização da educação gratuita, na vitalidade da democracia parlamentar, que futuro a história reserva: a adesão ao neoliberalismo. Iniciado com Mitterrand, continuado com o PRI e o justicialismo, até se complementar com a nossa versão nacional, ainda que esta nunca tenha sido expressão de movimento social organizado, dá uma resposta possível à crise de identidade da social-democracia. Haverá outras?
Em "Pós-neoliberalismo - As Políticas Sociais e o Estado Democrático" (Emir Sader e Pablo Gentili, organizadores, ed. Paz e Terra, 1995), Perry Anderson menciona a hipótese de um neo-socialismo, com propostas centradas numa reavaliação da concepção dos valores, da propriedade e da democracia. E conclui: "Seus símbolos não seriam verborrágicos: nem a águia da arrogância vizinha, nem o burro da sagacidade tardia, nem a pomba da conciliação pacífica e, menos ainda, um tucano de conivências fisiológicas".

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