São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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Matizes da transparência

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Desafios: Ética e Política
Celso Lafer Siciliano, 243 págs.
R$ 19,00

Na política dos modernos, qual o requisito maior? Na democracia, não pode haver dúvida: a transparência. A política deve ser feita às claras, à luz do dia, os negócios do Estado são sempre públicos. Os cidadãos têm direito a uma informação exata e honesta dos governantes, lembra Celso Lafer. No exercício do governo, muitas vezes esse requisito colide com outra prática, a dissimulação. O direito à informação dos governados descerra a opacidade dos governos, para que as máscaras da hipocrisia não venham a ser arrancadas pela violência.
Nos 22 ensaios de Celso Lafer reunidos em "Desafios: Ética e Política", há uma busca constante da necessidade de, pela ética, restabelecer na política o equilíbrio, a igualdade entre o "mais" dos governantes e o "menos" dos governados. "Sempre tive a convicção de que em uma democracia a transparência do poder é fundamental e de que o controle das políticas públicas pela cidadania deve ser feito através de uma informação apropriada", revela numa entrevista. Transparência, igualdade, a tensão entre o Príncipe e os governados, aquele outro lado da lua da política descoberto por Maquiavel, estão presentes nos cuidadosos estudos sobre autores que o inspiram, nos perfis intelectuais, nas reflexões sobre a experiência, nos ensaios sobre Lasar Segall e Borges até os caminhos dos direitos humanos.
Considerados os liberalismos no plural, Celso Lafer sempre se reivindica como liberal "na vertente contratualista, de cunho jurídico e inspiração republicana". Num campo ideológico (mais do que doutrinário), marcado paradoxalmente em nosso país pela intolerância, é difícil situá-lo apenas nesse campo. O discernimento dos matizes, o respeito pela opinião diferente, que atribui a Antonio Candido no belo retrato do mestre incluído no livro, pratica-o ele mesmo a todo momento. Reconhece a "inequívoca nitidez da identidade socialista" do retratado e a não correspondência com suas opções políticas jamais é obstáculo para a compreensão e claridade da explicação.
Essa forma de abordar a diferença aprofunda-se na discussão sobre direita e esquerda, fundamental no contexto mundial após a queda do muro de Berlim. Não tem ilusões sobre os processos de globalização -tanto políticos como econômicos-, considerados complexos, diversificados e contraditórios. Por não acreditar que seja garantia automática da felicidade, reconhece a atualidade da temática maior da esquerda -a igualdade.
Não desqualifica a distinção entre esquerda e direita, ao contrário, valoriza-a, por essa dicotomia haver introduzido na vida política moderna o princípio de paridade, rompendo uma concepção horizontal da vida política. Entre Burke e Paine, nesse debate desconfio que Celso ficaria com Paine. Resgata para a esquerda o reconhecimento do valor dos princípios gerais da justiça social, do problema da miséria e da desigualdade social. Impossível cortar o nó górdio da dicotomia esquerda/direita pela violência, "é preciso desatá-lo pela inteligência. Isto requer o laicismo de uma atitude crítica e o arquivamento das posições dogmáticas, o que significa, no plano das idéias, uma mediação entre a política e a cultura ser operada através do método de aproximações sucessivas". Paciente trabalho de examinar propostas, avaliar a adequação dos objetivos aos meios, identificar os fundamentos de políticas públicas para realizar os imperativos de justiça social e de mudança. Eis seu método.
Talvez as etapas percorridas para a definição desse método já estivessem anunciadas pelas escolhas intelectuais feitas por ele dentro do campo liberal. Nada melhor para desvendar um autor que surpreender mais uma vez, como neste livro, os ícones de seu panteão. Duas linhas que convergem no itinerário temático, retomadas nos ensaios. Hannah Arendt, a força da verdade, discutida na tríade de análises da violência, da revolução e do juízo. A verdade como requisito maior para uma prática política que privilegie o poder, a capacidade de agir em conjunto. E Norberto Bobbio, com o imperativo da transparência, a crítica do segredo de Estado, do poder que oculta.
Mas as exigências da transparência vão além da prática política no interior de cada sociedade nacional. Esses requisitos, especialmente depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, devem prevalecer na comunidade internacional. Os direitos humanos na escala global asseguram que a breve passagem de cada geração na nave Terra possa preservar e alargar sua responsabilidade perante as gerações futuras, como Hannah Arendt preconiza na "Condição Humana". Nos três ensaios que concluem o livro, Celso Lafer explicita a longa caminhada dos direitos humanos nas suas três gerações -da liberdade, igualdade e dos direitos coletivos-, até a conferência de Viena, em 1993.
E aqui se mesclam teoria e prática política, quando esteve à frente do Ministério das Relações Exteriores, entre abril e setembro de 1992. Diante da "surpreendente fecundidade do inesperado", Celso Lafer consegue ser fiel a suas convicções em meio à tormenta da investigação policial sobre o presidente Collor. Sua responsabilidade no sucesso da Eco 92 ou no tratamento dos negócios correntes da diplomacia num momento de crise já são mais do que conhecidos. Conseguiu ainda fazer avançar a valorização dos mecanismos multilaterais, a transparência e a disposição para o diálogo internacional no campo dos direitos humanos.
Na sua gestão concluem-se as ratificações das principais convenções e tratados que reintroduzem o Brasil na plena legalidade do sistema internacional de proteção dos direitos humanos e alarga-se o diálogo aberto com as organizações governamentais e não governamentais. "Aqui, principalmente, devemos preocupar-nos em encurtar ao máximo a distância que separa o realizável do desejável", dirá no seu discurso de abertura da Assembléia Geral da ONU, em 1992. Seus "termos de referência", como gosta de dizer, em direitos humanos, já estavam faz tempo delineados com claridade.
Seus novos ensaios simplesmente confirmam esses rigorosos princípios. E demonstram que o pensamento democrático de Celso Lafer está marcado pela dignidade e generosidade intelectual.

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