São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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Para que filosofia?

OLGÁRIA CHAIM FÉRES MATOS

Educação e Emancipação
Theodor Adorno
Tradução: Wolfgang Leo Maar
Paz e Terra, 192 págs.
R$ 16,00

A filosofia moral de Adorno, a exemplo de sua dialética, é negativa. Se a ética é má-consciência estilizada, a moral é autocrítica da razão, é indenização da "vida mutilada".
Na descendência dos moralistas antigos e modernos, as "Minima Moralia" glosam as "Magna Moralia" aristotélicas. Mundo de mínimas morais, a atualidade testemunha a crise espiritual das sociedades contemporâneas e da racionalidade fundada no valor de troca: "este mundo", anotou Adorno, "não é propriamente humano, mas o do Capital". O mercado é o agente subordinador de todos os planos da vida ao fator econômico. E a indústria cultural é a expressão mais patente da insolvência da educação formadora ("Bildung") sob o impacto de valores empresariais do sucesso e do lucro. Conceito cunhado por Adorno, bem como seu correlato, o de semiformação ("Halbbildung"), ambos afastam o engano a que induzia a "cultura de massa". Esta não é produzida pelas massas, mas para as massas. A passividade é seu elemento. Os bens culturais não são também mercadorias, mas só mercadorias.
"Educação e Emancipação" significa educação para a emancipação. Compreender seu eclipse é interrogar a permanência da barbárie no interior da civilização, é questionar as relações entre autonomia e repressão para que Auschwitz não se repita. O nazismo -emblema do mundo administrado- não é um acidente de percurso político, mas o resultado do vitorioso desenvolvimento da "ratio", cuja matriz é a ciência moderna, desde Bacon vinculada ao desenvolvimento industrial agressivo, sob auspícios expressamente materiais. Há barbárie, diz Adorno, sempre que se retroceda à violência física. Genocídios, racismo, tortura -fundamentalismos religiosos e guerras- constituem-se na cultura fundada sobre o princípio de identidade e seu aliado -o de origem. Havendo sempre algo de primeiro e uno, cada grupo se vê como o legítimo representante da origem -essa identidade sedentária.
"Minima Moralia" coloca sob suspeita o pensamento que busca a verdade na pacificação entre conceito e coisa -com o que a verdade científica se converte em seu contrário, metamorfoseando-se em lei, fetichizada em fórmula. À fórmula teórica responde o estereótipo mental -criador, este, de esquizofrenia na sociedade: direitos do homem sem sujeito autônomo, cidadania sem cidadãos, movimentos políticos sem política -democracia sem democratas. No empobrecimento cultural, o homem perde mais que direitos. Perde a representação do direito a ter direitos. Mundo inteiramente fetichizado, o da indústria cultural: "aquilo que se porta como se destruísse o fetiche (deselitizando a cultura), destrói apenas as condições de identificá-lo como fetiche", diz a "Dialética Negativa". Estereótipo da lei e da democracia, favorece a dissimulação de inclinações totalitárias na sociedade onde o simbólico e o ideológico se confundem: "Considero a sobrevivência do nacional-socialismo na democracia como potencialmente mais ameaçadora do que a permanência de tendências fascistas contra a democracia" ("Educação e Emancipação", pág. 30).
A civilização secretamente preserva a barbárie, recalcando-a. No ensaio "O Que Significa Elaborar o Passado", Adorno mostra o arquivamento da memória pela indústria cultural. O espírito e a prática da mídia têm sua lei: a da novidade, mas de modo a não perturbar hábitos e expectativas, de ser imediatamente legível e compreensível pelo maior número de espectadores ou leitores. Evita a complexidade, oferecendo produtos à interpretação literal, ou melhor, minimal. Espécie de caça à polissemia, ela se impõe na demagogia da facilidade -fundamento do sistema midiático de comunicação. Portadora de dogmatismo e preconceito, a indústria cultural veicula uma servidão que se ignora a si mesma, pois submete o espectador ou o leitor a hábitos preestabelecidos. Semiformação é próprio da mídia. O semiculto é hostil à cultura: anti-socrático e anti-habermasiano, a certeza de seu saber é desproporcional em relação ao conhecimento e a seu próprio saber. Auto-referente, não aprende com o espaço e com o tempo, não reconhece diferenciações.
As imagens da mídia impedem de imaginar, inflacionam "os indivíduos com estímulos de que não conseguem mais dar conta". Em contrapartida, a recordação é "esforço de conhecimento", é "vontade de verdade". Ela é o "a priori" da auto-elaboração: "a sobrevivência do fascismo e o insucesso da elaboração do passado (...) devem-se aos pressupostos sociais objetivos que geram o fascismo" (pág. 43). No universo amplamente cientificizado, a recordação converte-se em "resíduo irracional". O "esquecimento frio" -sem registro no plano simbólico- explica a "volta do reprimido na civilização". Pois "o gesto de tudo esquecer e tudo perdoar -privativo de quem sofreu a injustiça, acaba advindo dos partidários daqueles que a praticam (...). O passado de que se quer escapar, por isso mesmo permanece vivo" (Hannah Arendt).
Esquecimento vazio é neutralização moral, é incapacidade de experiências existenciais, temporais. Neste sentido, Adorno observou na "Minima Moralia": "só são verdadeiros os pensamentos que não se compreendem a si mesmos". Compreender o que primeiramente parecia incompreensível não é o mesmo que dizê-lo ilógico. Incompreensível antes, inteligível mais tarde. Estereótipos, ao contrário, confinam pensamentos autônomos, tudo recepcionando como repetitivo, esperado. Consciência desperta e vigilante, a mídia é "mens momentanea", carente de recordação: "esquecer o sofrimento passado", anotou Marcuse, "é perdoar as forças que o causaram sem derrotá-las (...). Contra essa rendição do tempo, o reinvestimento da recordação em seus direitos é uma das mais nobres tarefas do pensamento".
Tendências totalitárias são invulneráveis a experiências formadoras e mobilizam a "imaturidade intelectual pela qual o próprio indivíduo é responsável". Responsabilidade, então: "falta de decisão e coragem para se valer do próprio pensamento". Indivíduo autônomo não teme "disposições imprevisíveis". Diferentemente da incontinência ou descontrole, são elas a manifestação de elementos inesperados e diferenciais, no próprio eu e entre indivíduos. Se identidade há, esta não é fixa, estrutura-se em tempos heterogêneos, cuja experiência vai-se anexando ao sujeito ao longo de sua história. Indivíduos autônomos reconhecem nas diferenças a semelhança, na semelhança as diferenças. O imprevisível contraria o esperado: "a imprevisibilidade (...) é o desconhecido pelo próprio indivíduo, um terreno oculto a ele próprio" (Adorno, "Temas Básicos de Sociologia", Cultrix, pág. 205). Medo da autonomia e servidão voluntária se encontram.
La Boétie, no século 16, diferenciou obediência e servidão. Na primeira, um povo é vencido e conquistado pela força, o conflito resolve-se na coerção das armas. O enigma encontra-se do lado oposto, na servidão, quando "se vê um número infinito de pessoas não a obedecer, mas a servir". Não se submetem por medo da morte -pois se prontificam "a apresentar-se corajosamente à morte", a dar sua vida por um Príncipe, um Partido ou uma causa qualquer. Na servidão, o próprio impulso de autoconservação se esvai. Se medo há, como disse Lefort, "este não é medo da morte física; é medo da indeterminação que nos habita (...) e que tem sua fonte em nossa liberdade".
Pensar é o contrário de servir: ainda segundo Lefort, "não pensar não significa não querer pensar, mas querer não pensar". Sem possibilidade de imaginar o próprio presente, "as pessoas que se adaptam (ao momento) relativamente sem esforço (...) revelam-se como não-emancipadas, na medida em que, aos domingos, deixam de lado qualquer reflexão nos estádios esportivos" (Adorno, "Dialética do Esclarecimento").
"Educação para a Emancipação" propõe disciplinas formadoras e não performáticas, portadoras de uma determinada interpretação do homem e da sociedade. A educação humanista, formadora, encontrava na leitura o procedimento nobre por excelência. Atividade paciente, é experiência simbólica que trabalha nosso mundo interior. Não se reduz a mera técnica. Que se considere que obras de pensamento representam partes inteiras de uma vida e de toda uma existência, constituídas de enganos, paradoxos e liberdade. É preciso gerações para recebê-las e interpretá-las -para decifrar a serenidade de Sócrates no momento de sua morte, os êxtases de Plotino, as noites atormentadas das "Meditações Metafísicas" de Descartes. Uma vida examinada nas obras de cultura requer tempo -à distância do dia industrial e do taylorismo do espírito.
Humanismo, pois: em máximas, sentenças e citações, moralistas antigos e modernos transmitiam ensinamentos que protegiam os homens, preparando-os para enfrentar infortúnio e boa sorte. Citações não contêm apenas um saber para ser lido ou ouvido, mas para ser escutado e seguido, constituindo índice de orientação no pensamento. O "conhece-te a ti mesmo" socrático ressoa no "Que sais-je?" de Montaigne. Na biblioteca do autor dos "Ensaios", citações em grego desenhadas na abóbada conjugam o presente -em que o filósofo escreve- com o passado, associando o lido e o vivido -hipertipia que desfaz hábitos mentais, quer dizer, estereotipias. Apreendendo o virtual sob o factual, as máximas dizem o inesperado. Em termos semelhantes, Adorno observou: "exagerei (no diagnóstico do presente) conforme aquela máxima segundo a qual hoje somente o exagero consegue veicular a verdade".
Sentenças escritas, citações desenhadas: nas primeiras a "auctoritas", nas segundas o "exemplum". Em seu entrecruzamento, a máxima moral, arte de buscar a justa vida e o bem-viver. De modo análogo, a educação, para Adorno, deve conseguir a formação do espírito que desestabilize a apatia da razão, o torpor dos hábitos, a inércia do preconceito. Nisto reside, para o filósofo, a possibilidade de criar "aversão à violência física".
No ensaio "Filosofia Para Quê?", vemos delinear-se as figuras de Kant e Sócrates. Kant afirmava que "não se pode ensinar filosofia, só se pode ensinar a filosofar"; e Sócrates envolvia o seu saber com estranho desconhecimento. Sua única sabedoria: "saber que nada sei". Duas maneiras de dizer que não se sabe o que a filosofia é, mas que se compreende, com clareza, a que sua ausência deixa o campo aberto.

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