São Paulo, segunda-feira, 1 de janeiro de 1996
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Luz nova sobre os mascates

STUART B. SCHWARTZ

A Fronda dos Mazombos. Nobres e Mascates. Pernambuco, 1666-1715
Evaldo Cabral de Mello
Companhia das Letras, 519 págs.
R$ 39,00

Há um meio século perdido na historiografia brasileira. Os anos que vão do fim do domínio
brasileiro no mercado mundial do açúcar, nos anos de 1650, e a idade de ouro de Minas, após 1700, nunca chegaram a atrair muita atenção das interpretações estruturalistas do passado colonial. O "tempo dos flamengos" constitui um breve hiato, uma "guerra que parecia paz", até que começasse a grande revolta. Apesar de se ter restabelecido a unidade, sob a égide portuguesa, após a expulsão dos holandeses em 1654, o Brasil nunca mais seria o mesmo.
No meio século seguinte, a concorrência das novas colônias inglesas e holandesas do Caribe provocou a baixa do preço do açúcar e o aumento do preço dos escravos. Às voltas com uma guerra de independência em seu território e com uma crise econômica nas colônias, Portugal se lançou numa busca febril de ouro em Monomotapa, nos sertões da Bahia e de São Paulo, sobrevivendo por meio da taxação que incidia sobre a convulsionada indústria do açúcar e sobre a açucarocracia, a assim chamada e autodenominada "nobreza da terra". Aqueles anos foram de crise, de epidemias, de governadores depostos ou substituídos, de calamidades e alertas apocalípticos, de queixas crescentes dos senhores de engenho contra o estado, de insegurança
gerada pelas campanhas contra os "holandeses de outra cor", os negros rebeldes de Palmares. Aquele foi um período de "paz que parecia guerra".
Esses anos turbulentos fornecem o contexto para o detalhado estudo de Evaldo Cabral de Mello sobre a Guerra dos Mascates, levante regional e municipal ocorrido em Pernambuco entre 1710 e 1712 e visto por alguns historiadores como manifestação precoce do nacionalismo brasileiro, enquanto outros o consideraram a ascensão da burguesia. Para Evaldo Cabral, todas essas interpretações são precipitadas, pois os verdadeiros eventos e personalidades permaneceram obscuros. O autor considera que foram muitos os elementos envolvidos: a luta do poder local contra o Estado, a emergência de conflitos entre interesses mercantis e agrários, as rivalidades municipais, e, sobretudo, o papel das ações individuais na construção das estruturas da história.
Mas, acima de tudo, Evaldo Cabral escreveu uma "descrição densa" do episódio, para
concatenar os acontecimentos e estabelecer aquilo que realmente aconteceu - prelúdio necessário a qualquer interpretação sociológica mais ampla.
Ele traça em detalhe os eventos de Pernambuco. O fracasso dos mercadores que desejavam ter representatividade na câmara de Olinda, a ereção revolucionária do Recife em município separado, a igualmente revolucionária reação da nobreza olindense e o cerco a que submeteu o Recife, e, por fim, a supressão, por parte da Coroa, dos pró-homens de Olinda em favor da mascataria - apoio, na verdade, ao comércio colonial. Em vez de uma interpretação nacionalista do conflito entre um estado metropolitano e os interesses coloniais, o foco aproximado revela alianças complexas e instáveis entre poderes locais, funcionários administrativos, instituições religiosas e até a mobilização de facções populares como os tundacumbes. Os mascates venceram no final porque "a monarquia e a mascataria eram sócias principais da economia de exportação". A revolta aristocrática da nobreza fracassou e os senhores, impossibilitados de governarem Pernambuco para si próprios, retiraram-se para seus engenhos, onde mandavam em
quem quisessem.
A Guerra dos Mascates, a contemporânea Guerra dos Emboabas em Minas e a revolta fiscal do "Maneta" na Bahia (e seria possível acrescentar ainda a revolta anterior de Beckmann no Maranhão, em 1684) foram manifestações precoces do desassossego colonial, mas não previram a "desagregação do Atlântico luso-brasileiro" -como o fizeram posteriormente as revoltas do início do século 19. Enquanto as elites coloniais podiam buscar para si maior liberdade e oportunidades, tomando repúblicas aristocráticas como Veneza por modelos possíveis para seu governo, não conseguiam contudo imaginar comunidades que dessem à vasta maioria outro espaço que o de escravos ou dependentes. Mesmo um século depois, os netos da nobreza e dos
mascates teriam dificuldade de pensar em tais termos.
Evaldo Cabral de Mello escreveu intencionalmente um livro que pode parecer antiquado, repleto de detalhes intrincados e argumentos cuidadosos que rechaçam a preocupação histórica moderna com a análise estrutural e trazem de volta, à história, eventos, personalidades e ações humanas.
Nas pegadas de Raymond Aron, considera este tipo de história tão válido quanto o que lida com o preço da carne ou com abstrações como "o Estado".
Às vezes, os historiadores que escrevem a história dos eventos fazem-no por não se preocuparem ou não se interessarem por questões mais amplas ou estruturas mais profundas. Não é este o caso da "Fronda" de Evaldo Cabral de Mello. Aqui, as páginas estão repletas de "insights" penetrantes sobre política, raça, colonialismo, nacionalismo, a Igreja, a escravidão. Mas Cabral não concebe tal história, nem escreve sobre ela a partir do vantajoso ponto de vista fornecido por três séculos de afastamento, e sim da perspectiva das pessoas que a viveram e para as quais as personalidades, as mudanças políticas e os acontecimentos do dia importavam de fato. "A Fronda dos Mazombos" se constitui em argumento favorável à idéia de que a história é, na verdade, feita pelo povo, e não por forças descarnadas. Talvez. É verdade que homens e mulheres fazem escolhas, mas suas escolhas não são infinitas.

Tradução de LAURA DE MELLO E SOUZA

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