São Paulo, quinta-feira, 4 de janeiro de 1996
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O elogio político do mau humor

JORGE DA CUNHA LIMA

O brasileiro é cordial demais. Uma leitura ligeira de Sergio Buarque poderia dar a impressão de que se trata de uma virtude do seu caráter. A observação mostra o contrário: pode ser um traço macunaímico do nosso povo.
O excesso de cordialidade e a rápida intimidade que se estabelece num relacionamento de tipo tropical constitui um nefasto hábito político. Um governante não pode ter intimidades, parentescos nem informalidades no exercício do cargo. Senão o exército de fisiológicos, que milita como um banco 24 horas em torno do poder, inicia celeremente o ataque. Em qualquer ocasião, basta um simples aperto de mão por parte do governante ou um sorriso meramente protocolar, vem a saraivada de pedidos: verbas, empregos, empenhos, promoções, nomeações, empréstimos, vetos, liberações etc...
Felizmente hoje, no Brasil, no nível federal e estadual, a coisa mudou um pouco. Cordialidade, "ma non troppo".
O presidente tem clara consciência da postura que a sintaxe governamental exige. E Fernando Henrique tem razão. Ninguém é amigo, parente ou condômino da Presidência da República. Pessoalmente eu posso sentir a maior honra em ser amigo de um cidadão que se tornou presidente, mas não posso me considerar íntimo da instituição que ele representa por delegação das urnas.
E isso é muito bom. O compadrismo arrasa qualquer governo da mesma forma que a composição política, sempre indispensável, não pode se confundir com intimidade nem partilha. Collor, que impostava um desempenho presidencial, na prática vivia manietado à turminha de Maceió, e essa foi a principal causa de sua ruína. A intuição política submergiu à falta de maturidade.
A Casa da Dinda nunca poderia ter sido Palácio do Governo. Infelizmente, quase todos os governos republicanos se identificaram com a patota dos presidentes, civis ou militares. Do Império não falo porque corte é corte e as intimidades estão delimitadas a priori.
Já em São Paulo, o decantado mau humor de Mário Covas é uma bênção política. Quase um álibi. Vejamos: na perspectiva de uma audiência menos humorada, o secretário de Estado reduz ao essencial todas as suas informações e pleitos. Não ousa a intimidade das demandas supérfluas ou pessoais. Restringe-se ao mínimo indispensável. Com isso se economiza o tempo do governador e se poupa o cofre do Nakano, que não anda repleto. Da mesma forma, as conhecidas corporações e instituições que têm acesso ao Bandeirantes maneiram nas demandas, porque o troco pode ser maior do que o pedido.
Eu mesmo, como presidente da Fundação Padre Anchieta, que é uma fundação de direito privado, independente nos estatutos e nos atos, mas que recebe verbas públicas para sua manutenção, pude sentir os bons efeitos de um mau humor responsável.
O governo estava sem tostão e o governador não tinha qualquer "parti-pris" contra a TV Cultura, apenas achava que ela e outras fundações deveriam colaborar com a própria sobrevivência para realizar suas atividades-fim.
E reafirmava isso com seu estilo próprio. O conteúdo estava correto. Nós todos, conselho, diretores, funcionários e 42 mil cidadãos que se manifestaram pedindo a manutenção da qualidade da programação da TV Cultura, arregaçamos a manga e fomos atrás do numerário, já que do produto a casa se desincumbia. Numa instituição como a Fundação Padre Anchieta a verba pública é necessária, indispensável mesmo, porque realizamos programas de interesse público, 20 horas por dia, nas rádios e na televisão. Formar a cabeça de uma criança é tão importante quanto pôr ataduras na cabeça ferida de outra criança.
E a participação da sociedade privada também é indispensável, uma imposição tanto mercadológica quanto moral. Oferecemos uma programação diferenciada para adultos e jovens, diversa da televisão comercial, que se pauta necessariamente pela ideologia do mercado e diversa também das televisões governamentais que se pautam pela ideologia do Estado. Produzimos e sintonizamos igualmente com o neto do Lula e o filho do Safra.
O resultado de tudo isso é que a sociedade entendeu o recado e o benefício da sobrevivência da Cultura. Já conseguimos um terço do que esperamos das empresas nacionais e multinacionais. Colaboração, aliás, com grande retorno de caráter institucional. Falta uma compreensão mais cidadã por parte das agências de publicidade.
A verba pública proposta para o orçamento de 96 é correta dentro do contexto financeiro do Estado de São Paulo. Foi conseguida pela força da opinião pública, pelo esforço interno de todos os funcionários da Fundação, pela sintonia entre o Executivo e o Legislativo e a sintonia mais difícil entre os setores culturais e econômicos, orquestrados pelo governador. Aliás, a TV Cultura é um patrimônio da cidadania, como recomenda a Constituição que sejam todos os meios de comunicação de massa.
E o que há de particular nisso tudo, quase exemplar mesmo, é que eu, presidente da Fundação Padre Anchieta, além da visita no dia da posse, não precisei e não tive nenhum encontro pessoal com o governador Mário Covas para tratar da chamada crise, apesar de ser seu amigo e até correligionário político há mais de 20 anos.
Tudo foi resolvido no estrito nível dos interesses institucionais e públicos. Por isso, sinto-me com liberdade de fazer o elogio do mau humor, como uma nova categoria política e, sobretudo, uma novíssima categoria mental.

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