São Paulo, quinta-feira, 4 de janeiro de 1996
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Freud está morto?

OTAVIO FRIAS FILHO

Antigamente, quando não tinham assunto, as revistas de informação americanas faziam capas com a pergunta, no estilo idiota-interrogante imitado pelas nossas: "Marx está morto?". Houve talvez dezenas de capas assim. O Muro caiu, Marx parece mais morto do que nunca e a falta de assunto, infelizmente, pior do que antes.
De vez em quando, para variar, trocavam um barbudo pelo outro, era Freud quem aparecia nas capas e então o título ficava assim: "Freud está morto?". Um editor mais imaginativo arriscou: "Marx está morto? E Freud?". Pois a fantasia se transformou em realidade. Aniquilado Marx, as baterias da nova ordem se voltam contra o charlatão de Viena.
É como se a questão fosse postulada nestes termos: onde restam, ainda, traços de pensamento especulativo, crítico e reflexivo, baseado no pressuposto de que pensar é destruir aparências? Onde o conhecimento ainda se atreve a prescindir de números, onde ainda se mergulha livremente no abismo das verdades desagradáveis?
Carlos Eduardo Lins da Silva relatou, recentemente, como uma grande exposição sobre a obra de Freud -a maior influência intelectual no século, difundida por todas as áreas da ciência humana, da arte, da vida cotidiana- foi impugnada em Washington. Alegava-se que a mostra era unilateral, que não contemplava visões opostas às do criador da psicanálise...
Freud vem sendo atacado por três flancos diferentes, que convergem numa manobra final, destinada a silenciá-lo para sempre. O primeiro deles foi previsto pelo mestre. Ele era médico e sempre insistiu que a psicanálise, como terapia, era um paliativo útil em certos casos, uma solução provisória à espera de que a farmacologia pudesse agir diretamente sobre os distúrbios mentais.
A bioquímica reclama agora seus direitos postergados; não passa uma semana sem que se anuncie a descoberta de que determinado comportamento psicológico tem base orgânica, fisiológica. O segundo flanco, ao contrário, tem inspiração cultural. Tendo sido homem, europeu e branco, conclui-se que Freud estava redondamente errado.
Pior do que simplesmente negar seu pensamento, porém, são os esforços quase sempre cômicos para adaptá-lo ao nosso mundo feminista, homossexual e étnico. Há uma contradição insolúvel entre o relativismo da mentalidade dominante e as descobertas que Freud julgava ter feito, revelando uma estrutura fixa subjacente à diversidade dos indivíduos e das culturas.
O terceiro flanco do ataque combinado é a apropriação da psicanálise pelo esoterismo. Aí vigora o vale-tudo do mercado das curas, cada terapeuta adotando sua receita particular à base de macrobiótica, ioga ou meditação transcendental. A fúria do combate que Freud moveu contra Jung leva à suspeita de que ele intuía, em toda a extensão, as consequências da permissividade que o ex-discípulo introduzia na psicanálise.
Não é de espantar que Freud pareça morto, nem que exista uma forte tendência a circunscrever sua obra ao campo literário, situando o autor apenas como uma espécie de romancista -ainda que um dos maiores da nossa época. O valor "terapêutico" da psicanálise é tão implausível quanto o do marxismo. Mas sem eles a árvore da inteligência ficou menos frondosa.

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