São Paulo, sexta-feira, 5 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Centenário de um filósofo

GERARDO MELLO MOURÃO

Os filósofos não alcançam, em nenhuma parte do mundo contemporâneo, aquela ressonância publicitária que faz a glória efêmera dos heróis do futebol, da música popular ou dos demagogos políticos. Quando um filósofo chega a tornar-se conhecido pelo homem da rua, como ocorreu com Sartre, isso é uma exceção. Pior: é um equívoco. Pois a vulgarização de Sartre não se deve propriamente à sua presença como filósofo, mas como militante partidário e ativista da imprensa. Os filósofos e o próprio Sartre sabiam disso.
No auge de sua glorificação popular, na luta pela revolução ideológica, decidiu um dia, num momento de reflexão, fazer uma visita a seu antigo mestre, o filósofo Martin Heidegger. Bateu à porta do velho professor e anunciou-se. Heidegger, que tomara conhecimento das atividades profanas do discípulo, não o recebeu. Mandou-lhe uma resposta breve e fulgurante por uma pessoa da casa: "Não recebo jornalistas".
Segundo testemunho de seus amigos, a resposta doeu a Sartre como uma chicotada no lombo. Mas ele a recebeu como a última lição do mestre: um filósofo não pode poluir a lâmina de cristal do pensamento puro toldando sua limpidez com interesses e compromissos que a queiram manipular.
Hoje no Brasil parece que os filósofos estão na moda. Grandes jornais abrem páginas inteiras para entrevistas e promoções em torno de respeitáveis professores de filosofia. Ainda bem. Mas nem por isso se pode ser muito otimista a respeito dessa súbita veneração. Haverá tantos filósofos no mundo, como dão a entender as sugestões da imprensa? Vale a pena lembrar a advertência de um jovem e brilhante pensador francês: "Depois dos gregos, existem apenas seis filósofos em todo o mundo. Cinco na Alemanha, e um na França".
A observação rigorosa e talvez extremista de André Glucksmann não deixa de ser ortodoxa. Pois, como filósofos propriamente ditos, devemos entender só aqueles raros espíritos que tocaram zonas de pele ainda intactas do pensamento e produziram a angústia ou a alegria criadora de uma navegação pioneira no campo do conhecimento.
Para não falar dos vivos -alguns dos quais se debruçam com irrepreensível autoridade sobre o "Grund" das indagações essenciais do pensamento-, apenas dois nomes podem ser lembrados no Brasil como protagonistas da maior das aventuras humanas, a de pensar. Nem é preciso ser extremamente rigoroso para concluir que, entre todos os que nos precederam, apenas dois nomes podem -e devem- ser lembrados como filósofos: o cearense Farias Brito e o paulista Vicente Ferreira da Silva -este, a mais fascinante e dramática vocação brasileira para a filosofia.
O destino é cruel para com a inteligência neste país. Em todos os campos. Na Europa, quando uma geração inventa um heresiarca, aparece um Martinho Lutero, espantoso gênio do "protesto" e, por isso mesmo, criador do "protestantismo", tradutor da Bíblia e fundador da língua alemã. No Brasil, quando surge um heresiarca, é apenas o "soi-disant" bispo Macedo ou o "bispo" Honorilton. Mas isso é outra história. Apenas para lembrar que a morte nos arrebatou precocemente Farias Brito e Vicente, antes que pudessem terminar a grande obra que haviam iniciado.
Este artigo está sendo escrito no último dia de 95. Era preciso ver escoar-se até a última gota o ano do centenário de uma das mais importantes figuras da filosofia neste país, Maurílio Teixeira Leite Penido -o saudoso padre Penido- para a verificação melancólica de que a data passou em brancas nuvens pela imprensa brasileira. A única voz que a celebrou foi o comovido testemunho de outro filósofo católico, d. Odilão Moura O.S.B. que, do silêncio de seu mosteiro, já nos deu algumas obras marcantes sobre a filosofia no Brasil.
Num belo livro, "Padre Penido -Vida e Pensamento" (Ed. Vozes), o filósofo beneditino cunha a imagem da vida e da obra do grande mestre, cujos primeiros livros foram editados na França e saudados com o maior respeito pelos professores com quem conviveu.
Pois, antes de voltar ao Brasil, onde exerceu cátedras diversas de filosofia, o padre Penido, menino ainda, foi levado por sua mãe para morar e educar-se na Europa. Filho de família aristocrática e rica do Império -os Teixeira Leite, pelo lado materno, e os Penidos, da linha paterna-, educou-se na França, na Suíça e em Roma. Abandonou as aspirações temporais que sua posição familiar lhe oferecia para fazer-se sacerdote e professor de filosofia e teologia.
Não cabe aqui uma crítica, nem sequer uma resenha do livro que evoca o admirável pensador católico que em Paris se confrontou com Bergson -a quem respeitava profundamente- e que recebeu, desde suas primeiras obras, a consagração de Jacques Maritain. Não é provável que a classificação inclemente de Glucksmann o inclua na categoria que limitou o título de "filósofos" a apenas cinco alemães e um francês.
Mas é certo que, em suas descobertas no oceano de Santo Tomás de Aquino, parece haver levantado idéias novas e criativas com seu luminoso entendimento da analogia, que abriu ao pensamento, nessa área, caminhos até então desconhecidos. Certa vez, recordando seus dias de juventude, Penido observava: "Éramos jovens, logo superficiais". Diante da omissão da imprensa na data de seu centenário, sua figura parece agigantar-se ainda mais, crescendo como uma denúncia viva diante do silêncio, da desinformação cultural, do desrespeito ao pensamento neste país.
Restam-nos o consolo e a indulgência de um julgamento como o que o filósofo fazia sobre si mesmo e sobre seus companheiros de adolescência: "Somos uma nação jovem, logo superficial". Mas presenças humanas e culturais como a do padre Penido e de seu biógrafo e crítico, d. Odilão Moura, nos trazem a esperança e a certeza de que um dia o Brasil também estará maduro para a aventura do pensamento puro.

Texto Anterior: As metades desiguais
Próximo Texto: Enchente; Informação improcedente; Agora, sim; Espanto; Falácia; Segunda categoria; Boas festas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.