São Paulo, sexta-feira, 5 de janeiro de 1996
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As metades desiguais

FÁBIO KONDER COMPARATO

Montaigne conta, no livro 1º de seus "Ensaios", um episódio que deveria servir como tema obrigatório de reflexão para os governantes do mundo inteiro, especialmente para os de nossa terra. Em meados do século 16, o jovem rei de França Carlos 9º exibiu à sua corte, reunida para a ocasião em Rouen, três indígenas que a expedição de Villegaignon trouxera da França Antártica, isto é, do Rio de Janeiro.
Indagados sobre sua impressão do Velho Mundo, os selvagens, utilizando uma curiosa maneira de designar os homens como "metades" uns dos outros, se disseram impressionados com a opulência de algumas dessas "metades", enquanto as outras careciam até mesmo do mínimo necessário. Não podiam compreender como essa multidão de miseráveis se resignava a conviver com os ricos sem assaltá-los ou atear fogo às suas casas.
Os pobres índios, obviamente, não imaginaram o resultado desse histórico encontro entre a civilização e a barbárie para o Novo Mundo. Em muito pouco tempo a desigualdade aberrante das "metades" humanas, que tanto os chocou, instalou-se por aqui também.
Montaigne bem que o previra, mas ninguém lhe deu crédito à época: não fomos defraudados pelo que os europeus (e depois os americanos) nos tiraram, mas sim pelo que nos trouxeram, ou melhor, pelo que fizemos questão de receber e copiar. Nossos males não vieram tanto da exportação desordenada de pau-brasil, ouro, diamantes, manganês ou minério de ferro, quanto da importação da sociedade estamental hierárquica, da monarquia absoluta e do "lamentável mal-entendido" de uma democracia política sem democracia social.
Há mais de 150 anos, precisamente em 12 de junho de 1841, Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, o pioneiro na introdução do colono assalariado em substituição ao escravo, reconhecia a evidência ao discursar no Senado do Império: "Todos sabemos bem que as agitações que têm havido entre nós procedem de havermos antecipado a nossa organização política à social".
Todos sabíamos bem à época, mas nos apressamos em esquecer. O Manifesto Republicano de 1870 (escrito antes que Eça de Queiroz criasse o conselheiro Acácio) não continha uma só palavra sobre a escravidão negra. Mas invocava, em contrapartida, a "verdade democrática" e louvava os "salutares efeitos da moderna fórmula do governo: o governo de todos por todos".
Três anos após, reunidos em congresso, os republicanos paulistas procuraram suprir a omissão do Manifesto, para explicar que eles nada tinham a ver com a escravatura: "A questão não nos pertence exclusivamente, pois é social e não política". Como tal, ela seria resolvida naturalmente, graças à "índole do povo" e aos "meios de educação". Um século após, os neoliberais diriam que se tratava de um problema de mercado.
Hoje, no entanto, qualquer pessoa medianamente informada sabe que a indecente desigualdade social instalada entre nós já não é apenas uma intolerável injustiça, mas um decisivo fator de ineficiência econômica. Segundo a fórmula célebre de Talleyrand, pior do que um crime é um crasso erro político.
No estágio atual de nossa evolução, o entrave maior ao crescimento econômico endógeno e ao ingresso de nossa sociedade na Terceira Revolução Industrial reside na deficiência do capital humano. Vale dizer, os direitos humanos de caráter social, notadamente os direitos à educação fundamental, aos cuidados de saúde, à habitação e ao trabalho, longe de serem superfluidades distributivistas como pregam os mentores econômicos da moda, constituem fator decisivo para o desenvolvimento integral.
Por tudo isso, é intolerável verificar que, para o atual governo, a questão social é puramente semântica e deve se resolver pela utilização de um método interpretativo.
Entre maio e dezembro de 1995, só no Estado de São Paulo, o número de desempregados aumentou em 200 mil. Segundo dados do IBGE divulgados por este jornal apenas 2,2% dos trabalhadores ganham mais de R$ 2.000. O Seade calcula que o Plano Real prejudicou a maioria dos assalariados. Mas o presidente da República nos mostra, na mensagem radiofônica de fim de ano publicada neste jornal em 27/12/95, que tudo isso é enganoso porque não sabemos ler as estatísticas.
"Muitos brasileiros perderam o emprego em 95 porque há empresas que estão terceirizando os serviços, quer dizer, demitem o empregado, ele cria uma microempresa e presta serviços para a mesma indústria onde trabalhara antes. Esses brasileiros que trabalham por conta própria e os que não têm carteira assinada são os que tiveram o maior aumento de emprego e renda desde o início do Plano Real".
Conforme a lição oficial, as "metades" humanas são hoje mais iguais do que nunca. A impressão contrária é mera ilusão de ótica. A legião dos desempregados não deve se lamentar nem protestar, mas sim agradecer ao governo pela formidável chance de virar patrão e ganhar mais dinheiro. E quanto ao mercado informal do trabalho, a novidade é que, ao invés de ser combatido, ele passa a ser apontado como exemplo pelo próprio presidente da República.
É como se fossemos arrastados ao início do século para ouvir novamente, da boca do presidente Rodrigues Alves, a mensagem tranquilizadora enviada ao Congresso Legislativo de São Paulo: "Entre nós, em um regime de franca democracia e completa ausência de classes sociais...". Acordes do Hino Nacional e pano rápido.

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