São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
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Salvação e danação de Verlaine

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pela boca do Des Esseintes, flor e espelho do esteticismo fim de século, J.-K. Huysmans destina a Verlaine um lugar no seu exigentíssimo panteão de poetas modernos, ao lado de Baudelaire, Corbière e Mallarmé. Isso no capítulo de "Às Avessas", em que, aliviado por algum tempo dos achaques da neurose que o atormenta, Des Esseintes se distrai arrumando o "número singularmente restrito de obras laicas, contemporâneas" da sua biblioteca. Enquanto as arruma, vai discutindo consigo os méritos de cada uma. Os "Poemas Saturnianos" lhe parecem ainda fracos, obra de um epígono de Baudelaire que só nas coletâneas subsequentes iria dar sinal de uma personalidade poética distinta. Tal personalidade estaria, para Des Esseintes, no poder de "exprimir vagas e deliciosas confidências, a meia-voz, ao crepúsculo (...) certos aléns perturbadores da alma (...) langores avivados pelo mistério desse sopro mais adivinhado que sentido".
O que o protagonista de "Às Avessas" (Cia. das Letras) aí encarece é evidentemente o Verlaine das antologias, o pintor de paisagens como estados d'alma brumoso-melancólicos. Para esse tipo de pintura, ninguém soube de fato recorrer com mais felicidade a certos casamentos de som e sentido próprios do idioma em que poetava. Se os ardores da França revolucionária, depois bélico-colonialista, tiveram seu emblema fonético no rataplã de "rr" de "A Marselhesa" -pronunciados rascantentemente, à Edith Piaff-, dois outros de seus sentimentos nacionais, o "cafard" e o "ennui", iriam encontrar um ícone sonoro à altura na dolente constringência dos "-on" e "-eur" da "Chanson d'Automne".
Mas os gostos bizarros de Des Esseintes, que aspirava, no terreno da literatura, a um tipo de "bálsamo mais irritante, mais aperitivo, mais ácido", vão ter ainda maior comprazimento nas audácias do Verlaine verse-maker, com suas rimas inusitadas, suas cesuras irregulares, suas elipses audazes, seus sonetos "de cauda para o ar, à semelhança de certos peixes japoneses de barro polícromo que se apóiam em suas peanhas de guelras para baixo".
Um desses sonetos de cauda para o ar ou inversos, em que os tercetos precedem os quartetos subvertendo a estrofação normal, é "Parfuns, Couleurs, Systèmes, Lois!", ao lado traduzido. Ele faz parte de "Sabedoria", livro de 1881 em que, numa espécie de ato de contrição, Verlaine aparenta renunciar de vez aos desregramentos de sua vida pregressa para converter-se à fé católica. Melhor dizendo: reconverter-se, após um interlúdio de descrença, à religião de infância, a qual de resto fora sempre normalmente burguesa, "affaiblie", como registrou nas suas desapontadoras "Confissões" de 1895 -desapontadoras pelo pouco que revelam do que ele próprio chamava de "ce moi compliqué", o eu mais secreto e sombrio no qual se enraizavam as antinomias profundas de sua vida e de sua poesia.
"Parfuns, Couleurs, Systèmes, Lois!" é transcrito na íntegra por André Rousseaux em seu breve mas luminoso ensaio acerca do papel desempenhado por Verlaine na evolução da poesia católica francesa. O primeiro verso desse poema, capital para o entendimento da religiosidade do poeta, faz referência ao célebre soneto "Correspondências", de Baudelaire, que enfatizava as homologias entre perfumes, cores e sons no seio da "tenebrosa e profunda unidade" da Natureza, divinizada como um "templo de vivos pilares". Pela influência que exerceu, a doutrina desse soneto acabou por se converter num sistema ou cânon de leis ou prescrições, palavras de acepção depreciativa na semântica do poema verlainiano, como dá a perceber o ponto de exclamação que as remata.
Segundo André Rousseaux, mais de um simbolista teria visto na teoria baudelairiana das correspondências o evangelho de um panteísmo poético-religioso que desembocava num "impasse". Nesse impasse é que Mallarmé escavaria a "sua cela de monge lírico", ao passo que Rimbaud, com deitá-lo explosivamente abaixo, abriria caminho para a "autêntica poesia religiosa de Claudel". Rousseaux não precisa a natureza do dito "impasse", embora se possam rastrear algumas indicações a respeito em outros ensaios seus sobre Baudelaire e Rimbaud, recolhidos no mesmo volume de "Le Monde Classique" em que figura o ensaio sobre Verlaine. Mas rastrear e discutir tais indicações nos levaria muito longe.
Contentemo-nos em assinalar que, no seu entender, Verlaine afirmava-se um "poeta verdadeiramente cristão" quando se voltava contra a "heresia" panteísta de "Correspondências". Suponho que a heresia, no caso, esteja em, ao confundir Deus com a Natureza, o panteísmo poético de Baudelaire abolir implicitamente o dualismo da fé católica, em que natural e sobrenatural, corpo e alma, humano e divino, sagrado e profano são termos irredutíveis um ao outro, ainda que complementares. O fato de Verlaine glosar o primeiro verso de "Correspondências" num soneto inverso ou "de pernas para o ar", como ele próprio lhe chamava, mostraria, por si só, o intento de ir em sentido contrário, de refutação.
Rousseaux sustenta que Verlaine não poderia ter sido "mais claro" nessa refutação, o que implica uma leitura unívoca do soneto. Mas, se se atentar para as aporias de sua dicção, tão bem marcadas no ponto de interrogação final, percebe-se que o soneto tem pouco de unívoco e menos ainda de claro. E não será no mínimo paradoxal essa refutação de Baudelaire respirar uma religiosidade de índole reconhecivelmente baudelairiana, na medida em que se compraz nos mesmos perigosos -e, por perigosos, sedutores- meandros do dilema salvação-danação tão detidamente cartogrados em "As Flores do Mal"?
Não há como não concordar com Rousseaux quanto ao sentido do primeiro terceto do soneto de Verlaine. Seu verso inicial rebaixa o naturismo de "Correspondências" a mero sistema ou cânon de prescrições, negando-lhe foros de mistério ou revelação religiosa. No verso seguinte, a saborosa metáfora das palavras assustadas como galinhas "põe em fuga as incarnações verbais desse espiritualismo da natureza". E o terceiro verso traz para o proscênio o mistério da Encarnação, o espírito fazendo-se carne para poder redimi-la de si própria. Daí por diante, todavia, é difícil perfilhar a leitura unívoca de Rousseaux que, sem analisar mais detidamente o restante do poema, dá-o todo como um empenho de "restabelecimento da poesia religiosa em lugar da religião poética".
O sentido do segundo terceto, por exemplo, é ambíguo. Talvez queira dizer que, ao erigir pragmaticamente em sistema o sonho ou a introvisão mística, para colocá-lo ao alcance do vulgo, a religião poética o degrada. E, na primeira quadra, ao reconhecer que as flores não podiam fazer as vezes do cálix litúrgico, Verlaine continua verossimilmente a dessacralizar a Natureza. Mas esta vai em seguida readquirir seus direitos quando a metonímia dos "seios entremostrados" põe enfaticamente em cena a carnalidade da mulher, realçando-a no décor da "noite de travesseiros refrescados".
Tal ênfase faz mais do que opor a dualidade da natureza cristã à unidade da natureza panteísta para restabelecer a noção da culpa original -o "problema de Deus e Mamon" a que se refere Rousseaux, citando Mauriac. Por abertamente sensual, a ênfase faz com que as aporias da quadra final -gozo e suplício, santos e danados- traiam o resíduo hereticamente baudelairiano que inquinava a ortodoxia do Verlaine de "Sabedoria" e continuaria a marcar-lhe vida e poesia até o fim dos dias. Refiro-me, claro está, àquela temerária religiosidade que se comprazia em oscilar entre Deus e Satã e encontrava, na volúpia do pecado e do remorso, o melhor acicate para os assomos de purificação e de transcendência que repontam, aqui e ali, em "As Flores do Mal".
Ninguém ignora que o Satã privativo de Verlaine foi o genial adolescente que escreveu -e ninguém mais a poderia ter escrito- "Uma Estação no Inferno". A ele é dedicado o segundo dos dois sonetos aqui traduzidos, o qual foi publicado numa revista em 1889 e no ano seguinte incluído em "Dedicatórias", volume que está longe de ser dos melhores de Verlaine. Apesar da sua convencionalidade "clássica" de peça laudatória, que não teme incidir nos lugares comuns do gênero, tipo "templo da memória" rimando com "glória", o soneto tem pontos de interesse. Como aquele "E" maiúsculo do verso de abertura a enfatizar a natureza angélico-diabólica do homenageado, ou o louvor da sua "beleza campônia, sabida" e da "sua indolência atrevida", ou, sobretudo, o encômio da sua coragem de ir até o "puro desmando" no desfrute da vida. Desses desmandos, o Pavre Lelian iria conhecer, no aviltamento dos seus últimos dias, o lado mais torvo. Lado que celebrou, com a crueza e o vigor de um Villon, nos versos terríveis de "Paralelamente".
Com tal advérbio, Verlaine fazia contíguo do Inferno o seu "Dieu à rebours", uma frase de Michel Dansel que certamente agradaria a esse outro mestre dos avessos que foi J.-K. Huysmans, o verlainiano de primeira hora invocado no pórtico destas considerações pós-tradutórias. Num dos poemas de "Paralelamente", dedicado sarcástica e rancorosamente à esposa burguesa que ele não trepidara em trocar por Rimbaud, pela vagabundagem, pela dissipação e pelo absinto, o poeta se auto-retrata em toda a sua abjeção final:
"C'est bien fâcheux: me voici, lamentable/ Épave éparse a tous les flots du vice" (É bem embaraçoso: eis-me, lamentável/ Destroço disperso nas vagas do vício.

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