São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
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O poeta que ajudou a vencer os nazistas

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Mesmo aqueles pouco dotados em poesia já devem ter lido em algum lugar estas palavras: "De la musique avant toute chose". Foi com elas que Paul Verlaine iniciou um de seus poemas mais famosos, teórico do título ("Art Poétique") à última estrofe, igualmente célebre por seu remate: "Et tout le reste est littérature". Poesia, para ele, era musicalidade acima de tudo, a arte da sugestão e da nuança por excelência, devaneio avesso a fórmulas e regras fixas. "Pegue a eloquência e a estrangule", recomendava em outra estrofe.
Aos que viveram intensamente a Segunda Guerra Mundial, a lembrança de Verlaine sugere outros versos, os que abrem a "Chanson d'Automne":
"Les sanglots longs/ Des violons/ De l'automne/ Blessent mon coeur/ D'une langueur/ Monotone" (Os longos suspiros dos violinos de outono ferem meu coração com uma languidez monótona).
Era com eles que a Resistência francesa se comunicava, por meio do rádio, com os aliados na Inglaterra. A tomada da Normandia deve tanto aos soluçantes violinos outonais de Verlaine quanto às primeiras notas da Quinta de Beethoven, a senha da invasão.
Embora nos tenha até ajudado a vencer os nazistas, para muita gente, contudo, Verlaine não passa de uma sombra de Rimbaud, o James Dean modernista.
Reverter essa imagem não é tarefa fácil, mas é provável que alguns experimentem fazê-lo este ano, ao sabor das homenagens suscitadas pelo centenário da morte do poeta. Revalorizando sua obra? Por aí, talvez não. Relendo há dias quase todos os seus versos, confirmei o que há tempos parece consensual: Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud permanecem num plano nitidamente superior, mesmo depois de excluídas da competição as ladainhas que Verlaine compôs em louvor a Nosso Senhor e Nossa Senhora, após trocar a esbórnia pelo beatério.
O poeta se agiganta quando sua vida paira acima de sua obra. O Verlaine boêmio sempre foi mais interessante que o Verlaine poeta. Ainda bem que os simbolistas não estão mais por aqui para contestar essa possível heresia; mas, com todo respeito a Alphonsus de Guimaraens (a Cruz e Souza nem tanto), o melhor Verlaine era o que vivia, e não apenas via, "la vie en rouge". Ou seja, o Verlaine dos bares e dos becos, dos porres homéricos e das "bagarres" sísmicas, dos tiros e das facadas; o Verlaine que fez da mendicância uma ocupação nobre e heróica.
Ao visitar Paris, em 1878, o escritor alemão Max Nordau ficou impressionadíssimo com o tratamento especial que ali se dava aos boêmios e outros desocupados com alguma espécie de talento. Logo descobriu a razão da deferência: os franceses receavam repetir com os maltrapilhos de então os mesmos equívocos cometidos 40 anos antes com os molambentos do romantismo, depois reconhecidos como gênios incompreendidos. Na dúvida, todas as figuras excêntricas que circulavam pelo Quartier Latin e faziam ponto no Procope, no Voltaire, no Chat Noir e locais afins eram dignas de respeito e atenção.
Quando atingiu o fundo do poço, Verlaine não só recebeu sustento do ministério da Educação, mas também foi protegido pela polícia, instruída a deixá-lo em paz mesmo se cometesse algum delito grave. Permanentemente bêbado e vez por outra recolhido a hospitais, passou seus últimos anos entre "clochards" e rameiras, dormindo ao deus-dará. Morreu coberto de glórias, como o vagabundo número um da França, como o "ponto de encontro" de toda uma geração de poetas inconformistas. De todos aqueles, enfim, que, segundo Maurice Barrès, "desejavam um lugar livre, fora dos círculos acadêmicos, à margem do sucesso e da própria sociedade".
Sua tragédia pessoal não teve início com a vinda de Rimbaud a Paris, em setembro de 1871, mas talvez antes de sua chegada ao mundo, em 1844, já que o alcoolismo era doença comum na família Verlaine, do lado paterno. Sua mãe, se bem que herdeira de uma bem-sucedida destilaria, tinha outro tipo de problema: uma mórbida fixação nos três filhos que abortara antes de Paul nascer. Tão mórbida que ela guardara seus fetos em vidros de conserva, estilhaçados por Paul durante uma das duas brigas feias que com ela teve em 1869 -por sinal, um ano histórico, em que também publicou sua segunda coleção de poesias ("Fêtes Galantes") e conheceu Mathilde Mauté, sua futura "Amélia".
Dividido sempre entre vocações, atitudes e sentimentos antagônicos -disciplina e desordem, calma e rebeldia, heterossexualismo e homossexualismo, segurança e vadiagem, devassidão e misticismo, alegria de viver e atração pela morte-, Verlaine passou quase todas as suas estações no inferno. Antes de conhecer Rimbaud, já se apaixonara por outro homem, o amigo de juventude Lucien Viotti, morto na guerra franco-prussiana. Depois de Rimbaud, caiu de amores por um camponês, Lucien Létinois, aniquilado ainda jovem por uma febre tifóide. A este, supreendentemente, nada de mal fez. Bêbado, Verlaine era capaz de tudo.
Várias vezes ameaçou de morte sua mãe, por pouco não estraçalhou o crânio de seu filho de um ano e quase estrangulou sua mulher, cujos cabelos, em outra briga doméstica, tentou incendiar. Seu caso com Rimbaud, tempestuoso do começo ao fim, culminou com um tiro no braço. Pelo último desatino, passou um bom tempo atrás das grades, na Bélgica, onde esperava que tudo com "os dois espectros felizes e soltos no ar sutil" desse certo.
Mas não deu. Nem na Bélgica, nem na França, nem na Inglaterra. E muito menos na Alemanha, onde se avistaram pela última vez em 1875, assim que Verlaine deixou de ver o sol nascer quadrado. Já era, então, um convertido ao mais místico catolicismo, desvio imposto, sobretudo, pelo desgosto de um casamento ruinoso e pelo fracasso de um amor que ousara dizer seu nome, mas não conseguira harmonizar duas loucuras.
"J'ai la fureur d'aimer" (tenho a fúria de amar), confessou num de seus poemas. Tinha, mesmo. E as marcas que esse furor deixou permanecem indeléveis até hoje.

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