São Paulo, segunda-feira, 8 de janeiro de 1996
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Alerta aos governantes: a situação dos quartéis

ROBERTO ROMANO

A imprensa prestou bom serviço à cidadania em 1995. O furo da "pasta rosa", as gravações com as estripulia de Edir Macedo honram o jornalismo de revistas como "Isto É" e "Veja". A Folha, por seu lado, brindou mais uma vez a consciência democrática com alarmas vitais para o convívio democrático.
O primeiro foi a análise da renda no país, com sua distribuição. Fica muito claro que estamos longe de qualquer democracia. A desigualdade entre nós é sementeira de fascismos. Apenas regimes de castas aproximam-se do modelo econômico e social patrício.
A reportagem mencionada serve como itinerário obrigatório na mesa dos parlamentares, executivos, universitários, juízes e de todos os responsáveis pelo destino nacional. Outro texto relevante para o Brasil refere-se aos militares (Folha, 26/12/95). Nunca é demais alertar a sociedade para as surpresas que podem vir das casernas. O ambiente nas Forças Armadas é tenso, o caso complexo do Sivam o prova. A reportagem em pauta traz uma radiografia da alma castrense, mostrando o quanto pode ser perigoso o inconformismo do setor, vital para o poder soberano.
Para entender o perigoso desprestígio da carreira das armas, devemos recorrer às análises de Elias Canetti, no clássico "Massa e Poder". Nele encontramos traços estratégicos do militar, especialmente do que subiu na escala hierárquica. A sentinela que permanece imóvel, diz Canetti, exemplifica o tipo do soldado. Os motivos humanos habituais para a ação, como os desejos e paixões, são reprimidos dentro dele. Todo ato seu deve ser garantido por uma ordem.
A sua atitude vital é a posição ereta e atenta diante do superior. A sua educação começa quando lhe são proibidas coisas lícitas aos demais homens. O aspecto anguloso do soldado mostra que ele se adaptou aos muros, sendo um prisioneiro satisfeito, seguindo regras indiscutíveis. Para ele a ordem tem valor eminente. Obedecer é a essência da pedagogia que o forma e define sua ação. A ordem deve ser impessoal e igualitária. Todos obedecem sem discutir, à diferença dos "civis", supostamente entregues à pura anarquia.
A disciplina, base dos exércitos, possui dupla face: seu aspecto declarado é a ordem indicada acima. O outro é a promoção, a qual corresponde à capacidade de um militar para ser aguilhoado, na sua consciência ética, pelo comando. Para cada ordem atualizada fica um espinho no corpo e na mente do soldado.
Se está na parte mais baixa da hierarquia, ele não pode desfazer-se dos espinhos: só obedece, tornando-se cada vez mais rígido em sua obediência. Para sair deste estado, só com a promoção. Quando promovido, ele se desfaz -nos outros- dos seus aguilhões/ordens. Mas sem obediência não há promoção.
Semelhante disciplina fez os mais poderosos exércitos do mundo seguirem decretos de partidos totalitários. "Estou cumprindo ordens." Sem tal frase hedionda inexistiriam o fascismo, o stalinismo etc. Todo exército regular segue a ordem das promoções, simultânea à disciplina. Para que ambas existam, a hierarquia deve ser mantida.
É absurdo para um soldado que obedeceu durante toda uma vida e chegou ao posto de coronel ou general-de-brigada imaginar que suas próprias ordens não serão obedecidas. Se tal coisa se anuncia surgem as aventuras militaristas, os golpes de Estado, as pressões ilegítimas sobre os poderes civis etc.
Recomendo a leitura do volume editado pela PUC-BH sobre a intervenção militar de 1964 ("Caderno Extensão", dez. 94). O soldo simboliza a importância do indivíduo na escala hierárquica. Um coronel recebe certa quantia que confirma a sua autoridade no comando.
A reportagem da Folha esclarece ao público algo conhecido pelos que estudam os soldados: o pagamento miserável nas Forças Armadas, hoje, é perigoso impulsionador de ressentimentos -na comparação entre civis e militares-, causando perda de autoridade e autoconfiança no oficialato. Sem a fé na carreira, a tentação do intervencionismo na vida política torna-se irrefreável.
Enquanto se processa semelhante corrosão, com resultados catastróficos, nossos políticos continuam sua prática mesquinha e suicida. As massas se desvinculam, como no caso dos sem-terra, das lideranças partidárias -mesmo do PT- e das igrejas. A guerra civil não declarada faz milhares de mortos nas lutas pelas drogas e nos outros comércios.
Faltam verbas às Forças Armadas, há carência de treino específico para as várias polícias. Em certos quartéis escasseia dinheiro para o rancho. É preciso, portanto, seguir cautelosamente o que se passa na mente dos soldados. Chegar à condição de coronel ainda fornece prestígio na tropa. Mas se continua a insensibilidade dos governantes, a proletarização dos militares pode ser caldo fértil de cultura para golpes.
O deboche generalizado que impera nos meios civis -incluindo os religiosos, como a Igreja Universal do Reino de Deus- fortalece a doutrina nefasta, seguida por enorme parcela do povo, sobre a ditadura, solução dos nossos males. Enquanto um deputado percebe milhares de reais para pouco trabalho e repulsivas paradas de fisiologismo, os soldados começam a fazer comparações. Não se pode menosprezar a ira de quem possui armas, mas está reduzido à impotência. Desconhecer seus rumores é aposta perigosa cujo pagamento será o sangue e o luto, para tristeza da vida civil e da República.
A cegueira política das autoridades, aliás, não se limita aos militares. Ela é retratada em reportagem sombria da Folha ("Governo planeja reajuste zero para funcionalismo", 5/1/96, pág. 1-4). Comentário lúcido de Josias de Souza: "É preciso fazer algo. Correndo."
Esperemos que em 1996 um "presente" assim não caia sobre o povo brasileiro.

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