São Paulo, segunda-feira, 8 de janeiro de 1996
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Quem lucra com o trabalho infantil

ODED GRAJEW

Na edição de 15/12 a Folha comenta uma pesquisa elaborada pela Fundação Abrinq e pela revista "Atenção" sobre o trabalho infantil no Brasil.
Na matéria a Folha revela a participação direta ou indireta, consciente ou inconsciente, de grandes empresas nacionais, multinacionais e estatais na exploração do trabalho de menores de 14 anos, e anuncia a decisão histórica da Volkswagen e da indústria calçadista de Franca (SP) de eliminar a contratação de crianças em todas as etapas da cadeia de produção de veículos e de sapatos, implantando ao mesmo tempo um projeto para colocar estas crianças na escola e preparar tecnicamente os adolescentes para o mercado formal de trabalho.
Cerca de 3,5 milhões de menores de 14 anos trabalham no Brasil. Mais de 70% deles recebem em torno de meio salário mínimo. Outros, semi-escravos, cumprem jornadas de até 12 horas e não recebem nada por isso.
Arrebentam os pulmões nas carvoeiras, abastecendo siderúrgicas fornecedoras da cadeia produtiva automotiva. Inalam cola altamente tóxica na fabricação de sapatos. Cortam até duas toneladas de cana por dia para abastecer de álcool a Petrobrás. O carvão produzido por crianças arde nos altos fornos das siderúrgicas para fabricar o ferro-gusa, matéria-prima indispensável para a produção do aço. Em vários canaviais crianças e adolescentes cortam cana durante 12 horas diárias, sem registro, ganhando menos de R$ 20 por semana.
Muitas das crianças têm 8 ou 9 anos. O pior é que as usinas são subsidiadas pelo governo. A Petrobrás compra de várias delas a preços mais altos que aqueles pelos quais revende o álcool.
Na indústria de calçados crianças de 5 a 14 anos trabalham em bancas instaladas em garagens ou cômodos de suas próprias casas, a maioria delas clandestinas. Em locais fechados e mal ventilados, cumprem jornadas de até 14 horas em contato com produtos tóxicos, como a cola de sapateiro. Com jornadas de 11 horas diárias, crianças de 7 anos colhem laranjas para indústrias de suco, nacionais e multinacionais, que mantêm o país como o quarto exportador mundial. A maioria não vai à escola. Além disso, logo ficam com dores na coluna por carregar diariamente centenas de quilos de laranja nas costas. É o começo de uma futura hérnia de disco.
Muitas companhias não têm informações sobre a conduta social de seus fornecedores e compram gato por lebre. Outros simplesmente fecham os olhos e tapam o nariz. E algumas acham mesmo esta barbaridade um excelente negócio. A verdade é que se os beneficiários finais, por decisão própria ou por ação do Estado, cancelarem suas encomendas junto aos exploradores de crianças, um vento civilizatório acabará por varrer esta chaga do nosso país.
Cerca de 3,6 milhões de crianças e adolescentes brasileiros, entre 11 e 17 anos, não sabem escrever nem o próprio nome. O alto grau de analfabetismo nas zonas rurais é comparável aos índices dos países africanos. A nossa evasão escolar é a terceira maior do planeta. As crianças brasileiras estão deixando as escolas para trabalhar, substituindo pais de família que estão desempregados e poderiam estar trabalhando com carteira assinada e garantias sociais.
Sem educação não há democracia consolidada e justiça social. Não temos a mínima condição de competir numa economia cada vez mais globalizada e dependente de informação e tecnologia. As crianças que trabalham precocemente estão se mutilando física e psicologicamente, se condenando a sobreviver na miséria e na marginalidade.
O lugar de nossas crianças é na escola. Empresas privadas, públicas e consumidores finais, ao adquirir, ao depender de produtos fabricados por crianças, ajudam a manter uma situação trágica e vergonhosa para o nosso país. São produtos vendidos no mercado interno e exportados para muitos países, especialmente do Primeiro Mundo, que tanto clamam contra o trabalho infantil.
Para eliminar a exploração da nossa infância no trabalho precoce, é fundamental a pressão da cadeia produtiva sobre os fornecedores de produtos fabricados por crianças. Os consumidores e os governos precisam tomar a decisão de não comprar produtos que envolvem trabalho infantil.
Esta pressão vai obrigar os exploradores das crianças a mudar de postura sob pena de perder seus clientes e fechar suas portas. Neste sentido a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança está tomando as seguintes iniciativas:
1. Apresentar projeto de lei por meio da Frente Parlamentar da Criança, obrigando todas as empresas participantes de licitações públicas ou beneficiadas por financiamentos de recursos públicos a não explorar mão-de-obra infantil.
2. Tornar pública a cadeia produtiva de alguns produtos e tentar conseguir o compromisso das empresas a pressionar seus fornecedores a eliminar o trabalho infantil e promover projetos que sensibilizem a permanência destas crianças na escola e a frequência dos adolescentes em cursos de profissionalização. As empresas exigem de seus fornecedores critérios de qualidade no fornecimento dos seus produtos. Devem passar a exigir critérios éticos e sociais.
A situação da criança brasileira é uma das mais trágicas do mundo. Está em nossas mãos, sociedade civil e governo, a possibilidade de mudar esta situação. Os consumidores e empresas desempenham um papel fundamental ao recusar produtos e benefícios que de alguma forma são oferecidos à custa da exploração das crianças.
A realidade das crianças trabalhadoras mostra que uma boa parte do Brasil bem de vida é alimentado por dutos que drenam riquezas e energias dos despossuídos. Estes dutos devem ser revertidos para que modernidade possa significar progresso e justiça social.

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