São Paulo, quarta-feira, 10 de janeiro de 1996
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Mr. Bean devolve genialidade à comédia

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

É uma pena que a Rede Globo, no "Fantástico", mostre trechos tão curtos das aventuras de Mr. Bean. O espectador sai perdendo, porque a arte cômica de Mr. Bean não se esgota num ou outro "sketch" breve, mas depende, sobretudo, de um acúmulo de confusões, de dificuldades, de agravamentos que vão ficando mais engraçados a cada minuto.
Mesmo assim, para quem não tem televisão a cabo -onde os problemas de Mr. Bean aparecem completos-, assisti-lo no "Fantástico" salva qualquer domingo.
Provavelmente desde Chaplin não surgiu coisa parecida. Mr. Bean é um gênio cômico, um artista dos mais raros. O que ele tem de engraçado dispensa qualquer explicação. É ver e dar risada.
Mas o que Mr. Bean tem de original, de criativo, merece comentário.
Há duas coisas, imagino, que fazem de Mr. Bean um acontecimento precioso no mundo do humor.
A primeira é que Mr. Bean é uma personagem malévola, mal-intencionada, egoísta. Os grandes atores cômicos, Chaplin especialmente, investiram numa certa pureza de coração. Sempre foram bons. A ingenuidade, o erro, a criancice, de Ben Turpin a Jerry Lewis, funcionam como dispositivo cômico. Buster Keaton pode não ter jamais sorrido, mas era uma boa alma.
Groucho Marx era um malandro idiotizado, mas não tinha nenhuma maldade secreta. Mr. Bean é um caso diferente. Trata-se de uma personalidade interesseira, invejosa, competitiva.
Há episódios antológicos. Mr. Bean está num hotel, e no refeitório é servido um vasto bufê. Um cidadão qualquer vai enchendo o prato. Mr. Bean faz questão de servir-se em dobro. O cidadão pega duas ostras, Mr. Bean abocanha umas doze, e olha com sorrisos de triunfo para o suposto rival.
Não existe, a rigor, coisa alguma -escorregador de piscina, cartão de crédito, bufê- de que Mr. Bean não se queira aproveitar. Aproveitar-se desonestamente. Sempre faz tudo às escondidas, sempre se congratula secretamente pelo proveito que teve e sempre se dá mal.
Ele é ainda mais engraçado porque se mostra muito cioso das aparências. Quer comportar-se como um lorde, ao mesmo tempo em que se rende a impulsos primitivos, infantis.
Assim, num restaurante, Mr. Bean se confronta com um prato horroroso, incomível. Inventa os recursos mais malucos para esconder a comida. Dirige caretas bem-educadas ao garçom, disfarçando o fato de que não pode comer o que lhe foi servido.
Haveria, desse modo, uma contradição permanente nas aventuras de Mr. Bean. Ele quer manter a todo custo uma aparência respeitável e se entrega eternamente a seus impulsos secretos.
Esse contraste, entretanto, não dá idéia de toda a graça de Mr. Bean. Há outro fator envolvido em suas histórias; e, para simplificar a análise, cabe-me dizer apenas o seguinte: Mr. Bean é incapaz de falar.
Com efeito, as confusões em que ele se mete seriam facilmente resolvidas se ele falasse. Mr. Bean perdeu um cartão de crédito. Ou melhor, um cidadão qualquer embolsou por engano o cartão de crédito dele. Tudo se acertaria se Mr. Bean abordasse o cidadão e explicasse o ocorrido.
Mas não. Mr. Bean prefere tentar um furto. Sem dizer uma palavra, enfia a mão no bolso do sujeito, sua mão se prende, a comédia começa.
Ou seja: Mr. Bean é uma personagem de cinema mudo, e daí sua graça infernal. Trata-se, evidentemente, de uma metalinguagem, de uma referência aos padrões do cinema dos anos 20. Vivendo num ambiente moderno, Mr. Bean é uma personagem importada dos filmes daquela época.
Sua inadaptação aos tempos atuais funciona comicamente. Só que ao mesmo tempo ele quer ser mais esperto do que a média dos cidadãos. Quer levar vantagem. É incompetente nisso. Mas sua incompetência não é desculpa. Mr. Bean não é nenhuma criança ingênua. É um canalha.
Criou-se, assim, o maior personagem cômico dos últimos tempos. Esse idiota interesseiro, esse crianção afásico e invejoso, esse mímico competitivo é bem o retrato do homem moderno, do sujeito contemporâneo, elementar nos seus interesses, desastrado na hora de atendê-los, incapaz de se explicar verbalmente, atento a toda espécie de convenções, mas errando sempre na hora de segui-las. Mr. Bean é o retrato genial dessa incompetência, dessa submissão, dessa mínima revolta.

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