São Paulo, sexta-feira, 12 de janeiro de 1996
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Filas de visto são vergonha nacional

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O consulado dos Estados Unidos promete normalizar por estes dias a concessão de vistos de entrada para aquele país. Preciosos vistos de entrada! Nem se fale da famosa "green card", que garante residência e trabalho legal nos Estados Unidos. Um vistozinho qualquer, válido por três meses, já é o sonho do turista brasileiro. E tem sido difícil realizá-lo.
Só viajei uma vez aos Estados Unidos, em 89. Para tirar o visto, já não foi agradável. A fila era grande, a gente tem de passar por uma porta de vidro blindado, vi um retrato sorridente de Bush em fundo azul, e é verdade que os funcionários me trataram bem.
O mais terrível era ver os candidatos à obtenção do documento. Tinham de exibir a escritura de um apartamentozinho, ou um atestado do empregador, ou mesmo a certidão de posse de um fusca, para provar que dispunham de bens aqui no Brasil. Ou seja, não eram esfomeados, não estavam procurando os Estados Unidos para obter o que conseguiriam aqui mesmo, mendigando nas esquinas.
Mas os Estados Unidos são a grande esquina do mundo, e o Brasil é um dos maiores mendigos do mundo; logo, qualquer brasileiro, supõe-se, é um mendigo até prova em contrário.
Sei que nessas coisas de visto há regras de reciprocidade internacional, de modo que não vou culpara os Estados Unidos pelas exigências. Sei também que ao Brasil parece ser interessante qualquer americano que chegue, e que aos Estados Unidos um brasileiro há de ser visto como fonte de problemas. No mínimo, o roubo de cinzeiros no hotel. Lá, de qualquer modo, não precisam de cinzeiros. Mas muito menos de brasileiros.
Minha ignorância em questões diplomáticas não diminui o efeito simbólico da cena: um brasileiro, mostrando-se possuidor de um fusca, tentando obter visto depois de uma fila acachapante.
O nome que dou para isso é humilhação. Humilhação de um país, o Brasil. Essas filas são uma vergonha nacional. Não dos Estados Unidos, que lá pouco me importa se Clinton e o Congresso não se entendem, se os serviços públicos não funcionam, e, se não funcionarem, para eles será um aprendizado de terceiro-mundização que eles estão tendo, bem-feito.
Mas é humilhação para os brasileiros. Poderiam pedir o visto como pedem graça para Nossa Senhora Aparecida ou para o Senhor do Bonfim: de joelhos. "Valeria a pena"; não duvido que esta é a opinião de muitos desesperados.
Entramos aqui na segunda -e mais forte- humilhação nacional. Por que cargas d'água vale tanto a pena enfrentar filas e mostrar documentos para entrar nos Estados Unidos? Por que tanta gente quer ir para Miami? Nunca fui a Miami, e não sou mais infeliz ou feliz em função disso. Será que Miami vale uma fila?
Antigamente, as pessoas iam aos Estados Unidos para fazer compras. Percebi isso quando fui a Nova York. Não há nada para ver ou fazer em Nova York. Só compras. Detesto Nova York.
O que vi em Nova York? Museus de arte moderna, tudo bem. Museus de arte antiga, que beleza. Mas desconfio que o turismo, de maneira geral, é uma coisa sem sentido, e que museus apenas preenchem de sentido a falta do que fazer, a paixão deambulatória e visual do turista.
Oito dias em Paris: muito bem, um dia você reserva ao Louvre, e lá vai você, de guia em punho, depois de uma fila fenomenal, reconhecer a Mona Lisa. É difícil acreditar que vendo um quadro ao vivo se retirem mais emoções do que as que já se tinham ao vê-lo em fotografia. Aliás, não há emoção nenhuma, uma vez que tal ou tal outro quadro famoso sequer é "visto" pela primeira vez. É apenas "reconhecido"; entranhou-se tanto na cultura visual média, que sua "aura", se é que existe essa ficção de Walter Benjamin, não funciona. Ou pelo menos não funciona para o turista médio.
O turista médio aprende muito indo a museus; pode descobrir-se um admirador de Rubens ou de Vermeer, coisa que acontece também para quem abre um livro de arte sem sair de casa, mas ninguém abre um livro de arte, e todo mundo quer sair de casa.
Então o turismo é apenas uma vontade de sair do país, não de entrar em país nenhum. Muito menos a de entrar nos Estados Unidos. Desculpo as crianças pela Disney. Mas, para os adultos, qual a necessidade? Compras?
Graças às últimas autoridades econômicas, o Brasil vive uma orgia de importações. Não sei se é preciso tomar um avião, enfrentar a fila de visto e depois a de entrada no aeroporto, gastar passagem e aguentar o aperto da classe turística, para fazer tanta economia.
Em Nova York tive, é claro, alguns prazeres. Escolher que tipo de ovo eu teria no café da manhã. Achar táxis amarelos em todo lugar. Ver prédios altíssimos, como se cinco avenidas Paulista uma em cima da outra. Comprar coisas. Lá, sem dúvida, é mais fácil comprar. As pessoas em geral são simpaticíssimas, especialmente se forem balconistas, e dão brindes, ofertas, descontos.
Fui comprar uns perfumes para dar de presente na Sak's e ganhei meias, bolsas, badulaques de brinde, que também me serviram para dar de presente. É um paraíso do consumidor -só que esse consumidor já gastou também a passagem de avião, o desjejum de ovos com bacon, o hotel.
Não há muita racionalidade em ir para os Estados Unidos. Mas há outra coisa, que não se mede em quilômetros de museus, quilos de compras ou miligramas de colesterol. É o fato de você estar lá. Tudo aquilo que sempre aparece nos filmes -as lanchonetes, a falação, os tipos que passam pela rua, os táxis amarelos- está a seu dispor, numa indiferença, numa naturalidade inconsumível. Você já pagou por ela: está em Nova York, como se fosse uma personagem de Woody Allen ou de Scorsese. Admito que esse prazer valha a viagem.
Mas é o prazer do colonizado, é o prazer humilhante de quem se diz: "Puxa, finalmente estou aqui". Ou é o prazer mais colonizado ainda, o de quem se diz: "Ah, estou aqui de novo. Vou voltar àquela lanchonete onde estive da última vez". E depois recomenda a lanchonete aos amigos. Não que seja melhor que duzentas outras, mas você estava alegre ali.
Muita bestice e muita colonização em troca de muito pouco. Vale a pena uma fila no consulado para isso? Acho que não. Eles não querem que eu esteja lá. Eles estão certos. Também não faço questão nenhuma.

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