São Paulo, sexta-feira, 12 de janeiro de 1996
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Mitterrand, o legado da cultura

JOSÉ SARNEY

A morte cria unanimidades. Esta é a hora de Mitterrand. Depois vem o campo racional do julgamento da história.
Não vou falar da discutida e controvertida vida política e do político Mitterrand. O homem hábil, esperto, que sabia aproveitar as oportunidades e que atravessou o difícil mar de colaborador do regime de Vichy emergiu ministro da 4ª República, foi algoz da 5ª, contra De Gaulle, até transformar-se em ressuscitador do Partido Socialista.
Vêm, então, a carreira de derrotas e a vitória para a Presidência da República, e rei. "Le Roi", que governou a França mais do que a média dos reis franceses, com ar imperial e majestade.
Do socialista radical nasceu o maior servidor da França capitalista, de uma Europa em marcha para um projeto próprio e, dentro dela, um projeto Mitterrand para a França no novo cenário.
Desejo falar do Mitterrand intelectual, do Mitterrand que amava as artes e que tinha o senso do dever que deve ter todo chefe de Estado consciente de suas responsabilidades: ser o guardião dos valores culturais da pátria. De Gaulle, nessa linha, teve a seu lado Malraux. Mitterrand entregou a Jacques Atali os escritores e a Jacques Lang, os artistas.
De Napoleão, Paris tem o Arco do Triunfo, a arquitetura eterna, Os Inválidos, as pontes sobre o Sena, o Louvre e o monumento que são as idéias do Código Napoleônico, e tudo mais. De De Gaulle, o senso de grandeza: "A França é maior do que os franceses".
Mitterrand ficará imortalizado como o homem de Estado que construiu o Arco da Défense, a Grande Biblioteca, a Cidade da Ciência, a Cidade da Música, a Pirâmide do Louvre, a Ópera da Bastilha, o Instituto do Mundo Árabe e todo o conjunto arquitetônico da Défense.
É preciso assinalar ainda a política de descentralização cultural de Mitterrand, com a disseminação de museus por toda a França.
Tive com Mitterrand vários encontros. Fascinava-me o homem culto, que mesmo nos assuntos áridos e protocolares colocava um substrato de escritor.
Teve alguns gestos de consideração comigo, entre eles recusar receber Collor ainda candidato, pelos insultos que este me fazia. Ele sabia das coisas. Condecorou-me no mais alto grau da Legião de Honra da França.
Para o Bicentenário da Revolução Francesa, convidou 20 chefes de Estado do mundo inteiro. Um deles fui eu e, na mesa principal do jantar, fez-me sentar à sua esquerda, tendo à direita Bush.
Foi o primeiro chefe de Estado que recebi no Brasil. Ele trazia em sua comitiva a maior glória viva das ciências humanas, Lévi-Strauss, que escreveu os "Tristes Trópicos". Marcava a visita com o símbolo dos valores espirituais maiores do homem.
Vejo Mitterrand morto e, no seu rosto, o homem de cultura. A França inteira recorda essa sua face. Seu retrato oficial era com um livro na mão.
Que longo caminho ainda tem de percorrer o Brasil. É uma boa lição para meditarmos sobre o legado cultural de Mitterrand.

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