São Paulo, sexta-feira, 12 de janeiro de 1996
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Doença legal da saúde

DALMO DE ABREU DALLARI

Promover inovações na administração pública não significa necessariamente introduzir melhorias. E qualquer inovação que se pretenda fazer contrariando a Constituição é inevitavelmente má e indesejável, pois nenhum benefício administrativo compensa a destruição da ordem superior do país.
A pretensão de impor um novo sistema para prestação de serviços básicos de saúde à população de São Paulo, sob o rótulo de Plano de Atendimento à Saúde (PAS), vem causando sérios problemas, por vários motivos, entre os quais se incluem a inconstitucionalidade e o desrespeito a normas legais nacionais que fixam regras de segurança jurídica e moralidade para todo o setor público brasileiro.
Tudo se passa de maneira aparentemente legal, pois o prefeito Paulo Maluf, valendo-se de sua maioria na Câmara Municipal, conseguiu a aprovação de uma lei (a lei municipal nº 11.866, de 13 de setembro de 1995) que acolheu o plano e deu carta branca ao prefeito para entregar os serviços de saúde a uma entidade privada, bem como para dispor de funcionários, equipamentos e imóveis do município. Ocorre, entretanto, que em alguns pontos essa lei afrontou normas constitucionais, como não será difícil demonstrar.
A Prefeitura de São Paulo transferiu a uma cooperativa, que é uma entidade privada, a prestação dos serviços municipais de saúde em certa região, transferindo-lhe também o uso de equipamentos e imóveis pertencentes ao patrimônio municipal. A cooperativa se obrigou a prestar serviços e a prefeitura assumiu a obrigação do pagamento, perfazendo-se, desse modo, um contrato, mesmo que disfarçado com outro nome, como sabiamente prevê a lei federal sobre licitações. E a prefeitura contratou todas essas transferências, com a respectiva contrapartida, sem licitação.
Ora, conforme dispõe textualmente a Constituição, no artigo 37, inciso XXI, "ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública". Com base nesse dispositivo foi aprovada a lei federal nº 8.666, de 1993, conhecida como Lei de Licitações, que regulamentou o artigo 37 da Constituição, fixando normas gerais básicas para as licitações. O município pode também legislar sobre o assunto, em caráter suplementar, mas está obrigado a respeitar o que se encontra na lei federal.
Examinando-se a Lei de Licitações, verifica-se que ela prevê duas possibilidades de contratação de serviços sem licitação. Uma delas é a hipótese de impossibilidade de concorrência, quando, por exemplo, só existe uma empresa prestadora do tipo de serviço que vai ser contratado. Nesse caso a licitação não é exigível, por motivos óbvios.
A outra possibilidade inclui os casos em que, embora possa haver mais de um concorrente, motivos especiais, compatíveis com a superioridade do interesse público, justificam a dispensa de concorrência. As situações que se enquadram nessa hipótese são enumeradas, com muita precisão, no artigo 24 da Lei de Licitações e por ali se vê que a contratação, com entidade privada, de serviços que muitos estariam aptos a prestar, não pode dispensar a licitação.
Assim, portanto, os artigos da lei municipal que autorizam a contratação com a cooperativa, sem licitação, contrariam norma superior, e por isso padecem de insanável inconstitucionalidade, não valendo como lei. Acrescente-se ainda que a prefeitura contratou os serviços com entidade privada recém-criada, sem nenhuma experiência, portanto, o que explica, aliás, as graves dificuldades que já se verificaram.
Outra irregularidade que afronta norma constitucional é a participação da cooperativa na gestão dos serviços. Com efeito, o artigo 197 da Constituição permite que a execução seja feita diretamente pelo poder público ou através de terceiros.
Mas o artigo 198 estabelece a exigência de direção única em cada esfera de governo, o que foi complementado pela lei federal nº 8.080, de 1990 (Lei Orgânica da Saúde), que no seu artigo 18 dispõe expressamente que à direção municipal do Sistema Único de Saúde compete "gerir os serviços públicos de saúde". Contrariando essas normas, a lei municipal estabeleceu que a gestão dos serviços será em forma de parceria.
Outro ponto que afronta a legalidade superior é a destinação dos recursos financeiros para a saúde. De acordo com os dispositivos da Lei Orgânica da Saúde, haverá um Fundo Municipal de Saúde que fornecerá recursos para que os municípios prestem os serviços básicos de saúde. E a lei municipal de São Paulo previu, irregularmente, o repasse dessa verba a uma entidade privada.
A par disso, nos termos do artigo 33 da Lei Orgânica da Saúde, a aplicação dos recursos do Fundo Municipal de Saúde deverá ser feita com a supervisão do Conselho Municipal de Saúde, que no entanto teve sua competência ilegalmente anulada pela lei municipal.
Esses e outros pontos, igualmente graves, justificam a resistência dos médicos municipais a aderir a essa aventura ilegal, que já vem causando sérios prejuízos à população e que muito provavelmente acabará sendo fulminada pelo Judiciário.

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