São Paulo, sábado, 13 de janeiro de 1996
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O que nos reserva o mundo futuro - 2

RUBENS RICUPERO

A primeira manchete -surpresa de janeiro, a renúncia inesperada do primeiro ministro do Japão, introduz mais cedo do que se esperava a nota de mudança e incerteza que dominará a curto prazo a vida política de muitos países-chaves em 1996. Este será, de fato, um ano de eleições e possível mudança de guarda na Rússia, Espanha, Itália, Índia, Japão e EUA.
As eleições norte-americanas podem até vir a ser, na opinião de alguns, as mais significativas do fim do século. A longa queda de braço em torno do equilíbrio do orçamento deu ao presidente Clinton a oportunidade de traçar uma linha que o diferencia claramente dos neo-conservadores de Newt Gingich: embora concorde com o objetivo final do equilíbrio, o presidente não está disposto para isso a sacrificar as despesas com educação, saúde para os aposentados e meio ambiente.
Nestas últimas semanas, tanto as greves francesas como a semiparalisia da administração norte-americana ilustravam de forma diversa o mesmo problema que aflige praticamente todas as economias avançadas: os déficits orçamentários e a explosão do endividamento interno que comprometem o futuro dessas economias.
Na França foi o governo que tentou controlar o déficit mediante um pacote de medidas que despertou a oposição, não tanto da cúpula, mas das bases dos sindicatos do setor público.
Nos Estados Unidos, coube à oposição a iniciativa de tentar administrar um remédio draconiano, deixando ao presidente o papel de resistir em defesa dos valores que caracterizam seu partido e estão na raiz de algumas das causas do déficit. O eleitorado terá agora a última palavra e decidirá se deseja entregar a Casa Branca e o poder Executivo aos republicanos, que já dominam as duas casas do Congresso, operando, assim, talvez a maior revolução interna norte-americana desde Franklin Roosevelt. Ou, como alternativa, preferirá que os dois partidos se equilibrem mutuamente e reafirmará a fidelidade aos valores básicos do New Dual de Roosevelt e da Great Society de Johnson.
É contra esse pano de fundo de curto prazo que Michel Camdessus, diretor geral do FMI, tenta captar em termos mais estruturais as oportunidades e riscos da globalização num denso texto pessoal de reflexão crítica apresentado em Roma num colóquio organizado pelo Instituto Jacques Maritain.
Camdessus sugere que a humanização das dinâmicas da globalização só poderá ser feita através de dois valores básicos da concepção cristã do homem: a responsabilidade dos países e a solidariedade para harmonizar as lógicas da competição e da cooperação.
A prática mais eficaz da solidariedade exigiria, de início, reverter os retrocessos registrados em três domínios importantes: a cooperação monetária, a ajuda ao desenvolvimento e o apoio à transição dos ex-socialistas.
O diretor do Fundo deplora que se tenham abandonado as disciplinas monetárias dos acordos do Louvre de 1987 e afirma que, a fim de evitar perigos como a recente crise do Yen, será preciso adotar um mecanismo de estrita vigilância em comum do valor externo das divisas -chaves por parte dos governos responsáveis.
Mais perigoso ainda lhe prece o recuo em matéria de ajuda oficial ao desenvolvimento, a qual, após estagnar muito tempo na metade do objetivo de 0,7% do PIB, sofre agora cortes adicionais injustificados em nome do "álibi falacioso de economias orçamentárias".
Idêntico retrocesso se verifica em relação aos países em transição do Leste, confrontados com a relutância dos vizinhos em abrir-lhes os mercados ou o cansaço de continuar a proporcionar-lhes ajuda financeira ou técnica.
É, porém, no capítulo dedicado à gestão mais responsável das economias que Camdessus se refere mais diretamente ao problema evocado no início deste comentário.
"Não se obterá a humanização de uma economia globalizada através de menos rigor nos países industriais ou menos disciplina no ajuste estrutural dos países em desenvolvimento", afirma categoricamente.
Reconhecendo que o ajuste estrutural não tem boa reputação, admitindo os sofrimentos que ocasiona e as contestações que provoca, não vê, contudo, alternativa de credibilidade a um esforço de ajustamento capaz de criar "as melhores chances de sustentação exterior e crescimento equilibrado para amanhã".
Adverte mesmo, de maneira um tanto sibilina, ser "essencial que progressos importantes sejam efetuados antes que a conjuntura mundial se inverta, mais cedo talvez do previsto, e provavelmente antes do fim do século!"
Admitindo-se que assim seja e que não existem alternativas óbvias, resta explicar o porquê da rejeição veemente e às vezes violenta a essa terapêutica.
Dentre as razões que vêm à mente, uma das primeiras, particularmente sensível em países europeus, é o abismo de percepção entre os dirigentes, aí incluídos os partidos socialistas e o conjunto da população, que parece ter perdido a confiança em seus líderes.
Na raiz desse divórcio existe, porém, como em todo desengano, uma falta de correspondência entre a promessa e a realidade. Desemprego acima de 10%, estagnação salarial, crescimento medíocre, inferior ao dos anos 70, constituem fatores dessa realidade que alimenta a insegurança e o medo diante da globalização.
De pouco ou nada adianta dizer que tais fenômenos são antes o resultado da insuficiência que do excesso na aplicação do saneamento econômico.
No seu último livro, Isaiah Berlin lembrava o juízo severo do filósofo russo Alexander Herzen acerca das revoluções de 1848. Dizia ele que um novo tipo de sacrifício humano havia surgido, o de seres humanos sacrificados no altar de abstrações: a nação, a classe, o progresso, as forças da história, às quais nos sentiríamos tentados a acrescentar, se não fosse fácil demais, a globalização.
Herzen evocava o Moloch cruel das utopias de progresso afastando-se sempre mais das multidões exaustas que tentam chegar perto e dizendo-lhes ironicamente: "Depois que morrerem, tudo será belo na Terra". Os homens estariam, assim, condenados ao papel de escravos, mergulhados na lama, arrastando uma barcaça em cuja bandeira está escrito: "Progresso no futuro". E concluía: "um objetivo infinitamente remoto não é uma meta, apenas um engodo, uma meta deve ser mais próxima -no mínimo o salário do trabalhador ou o prazer no trabalho realizado".
Não se trata aqui de insinuar que os benefícios da globalização ou do saneamento econômico sejam miragens desse tipo. Entretanto, a fim de terem credibilidade, esses benefícios não podem tardar indefinidamente.
No fundo, o ceticismo se alimenta não apenas da demora em ver concretizados os benefícios mas da suspeita de que os sacrifícios reclamados para essa concretização pesem desproporcionalmente sobre os mais pobres, aqueles dos quais "até o pouco que têm lhes será tirado". Mas já aí passamos a um tema merecedor de tratamento mais amplo, o da justiça, que inspira todo o texto de Camdessus e o colóquio de Roma, colocado sob o signo do ideal de justiça e paz do humanismo integral de Maritain.

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