São Paulo, sábado, 13 de janeiro de 1996
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O trágico do trabalho infantil

MIGUEL JORGE

Desde o início do ano, a polícia de São Paulo filma de longe os meninos de rua para flagrar suas ações -assaltos a motoristas em semáforos fechados e nas ruas-, e com isso, tentar reduzir a criminalidade. A notícia, publicada pela Folha no final de dezembro, sugere que o Brasil é um país extremamente organizado e civilizado, que as autoridades pensam em tudo e que a nação tem baixíssima taxa de analfabetismo.
Infelizmente, não é assim: para milhões de crianças brasileiras, para numerosos meninos sem perspectiva, abandonados ou na miséria absoluta, o Brasil deveria ser uma solução, mas não é. Nem se fale dos meninos de rua desprezados pelo Estado, alvos de filmadoras policiais e que dormem enrolados em farrapos pelas calçadas, embalados nos vapores da cola. Mais estranho é que, para eles, exista uma legislação, embora, no mínimo, estranha.
Destes, a polícia exige identidade, atestado de moradia e outros documentos. Mas, como não têm nada disso, são internados em unidade para menores, de onde voltam às ruas para assaltar em semáforos, fumar craque e cheirar cola. Sem falar nas milhares de favelas, desempregados, mulheres e filhos abandonados por maridos e pais, mães solteiras e doentes desassistidos de todos os tipos.
Agora, surge na mídia mais um sintoma dos enormes problemas sociais enfrentados pelo país: os menores que trabalham nas regiões carboníferas de Mato Grosso ou Minas Gerais, nos canaviais do Nordeste, nos imensos laranjais do interior paulista e nos fornecedores das fábricas de calçados. Juntamente com o problema, o fato, surpreendente para a maioria das empresas organizadas, de que a cadeia produtiva, de uma forma ou de outra, seja afetada pelo problema.
Em recente reunião com a Fundação Abrinq, organização não-governamental presidida pelo empresário Oded Grajew, a Volkswagen informou que a empresa iniciaria estudos imediatos para eliminar o processo de trabalho infantil em sua cadeira produtiva. Os participantes da reunião -representantes dos setores de forjaria, siderurgia, autopeças etc. comprometeram-se a criar grupos de trabalho com o mesmo objetivo, conforme a mesma Folha, em matéria do jornalista Clóvis Rossi.
A decisão da Volkswagen, que, evidentemente, não emprega crianças, mas foi informada de que compra produtos cuja matéria-prima envolve mão-de-obra infantil, é uma reação normal e natural a um dos aspectos mais dolorosos da realidade brasileira.
Conforme estudo divulgado em dezembro pelo Instituto da População, outra organização não-governamental de Washington, nove em cada dez nascimentos em 1996 ocorrerão no mundo subdesenvolvido. Em apoio a esses dados, estudo da Comissão Econômica da ONU para a América Latina -Cepal-, também divulgado mês passado, revela que o número de crianças que trabalham é altamente preocupante entre os latino-americanos, pois chega a 39% da população.
O uso da mão-de-obra de crianças e adolescentes chega a 55% do total da força de trabalho na zona rural e varia entre 6% e 12% na urbana, situação considerada grave pelo Fundo das Nações Unidas para a infância -Unicef. No caso da indústria automobilística, a Volkswagen entendeu que tem uma responsabilidade social e que, por isso, precisa agir para tentar deter esse processo.
Como observou Rossi em sua reportagem, a descoberta do uso da mão-de-obra na cadeia automotiva -caso do carvão que vira ferro-gusa, indispensável para produzir aço- só pode ser algo profundamente constrangedor para a indústria. Países como Alemanha, Estados Unidos, França, Japão e Inglaterra, entre outros, têm tido a preocupação de condenar a exploração da mão-de-obra infantil. Como se aceitar, então, que esse processo atinja, mesmo indiretamente, empresas originárias desses países?
Agir agora é mais que oportuno para impedir de vez o aviltamento da criança brasileira, erradicando o caolho conceito de que o trabalho infantil enobrece o caráter, quando o que acontece aqui é exatamente o contrário.

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