São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1996
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No tabuleiro da baiana

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Estamos deixando Itaparica. O sol, no exercício integral de sua potência, ilumina a ilha, penetra o mar, estoura de luz a Bahia.
A lancha embica para Salvador e meu anfitrião aponta em direção à popa:
- "Olhe bem, que essa é uma cena rara".
Olho, e vejo Antônio Carlos Magalhães -sim, o próprio- atravessando a areia.
Vem lentamente em direção ao mar, em seu corpanzil bronzeado, de calção e camiseta, acompanhado por um pequeno séquito.
Visto in loco, saindo da casa plantada na praia para imergir nas águas verdes e mornas de seu reino, Antônio Carlos ganha uma aura especial.
O homem engravatado que se habituou a ver nas esferas altas de Brasília, o personagem envolvido em escaramuças palacianas, o político coronelesco de incontinências verbais e ações controvertidas surge, ali, em sua plenitude telúrica.
Completa-se, integrado ao habitat. Assume uma solar impostação oligárquica, ganha ares de aristocrata litorâneo e reflete, em imagem atual, antigas hierarquias da primeira capital.
Em síntese, é um monumento colonial o que vemos.
O pelourinho indo dar um mergulho.
Lembro-me da história de que João 6º teria inventado, por recomendação médica, o banho de mar.
É a imagem do monarca, no século passado, molhando-se no Rio de Janeiro, que me vem à mente diante da cena.
*
O cronista Nelson Rodrigues adorava referir-se a Mao-tse-tung, o opulento timoneiro da grande marcha e da revolução cultural, com uma imagem aquática: "A barriga insubmergível do líder chinês".
A de Antônio Carlos submerge. O respeito ao ex-governador e atual senador emana de cada paralelepípedo de Salvador.
O que não impediu alguém, no táxi, de perguntar ao motorista, em tom gaiato, ao ver a placa indicando a praia da "Armação":
- "Moço, essa aqui é que é a praia do Antônio Carlos?"
E o baiano ao volante soltou a gargalhada.
*
Um bom e divertido fotógrafo, que não vejo há tempo, nutria grande admiração pelo modo brilhante como seus ilustres e ilustrados amigos baianos -Caetano Veloso, Gilberto Gil e o psicanalista Luis Tenório Lima- discorriam sobre assuntos variados.
Aquele sotaque e aquela maneira especial de falar eram, para ele, sinal de distinção da inteligência discursiva desses cultivados personagens da boa terra.
Passado o tempo, ele foi morar na Bahia. Voltou e comentou com Luis Tenório, decepcionado:
- "Pensei que eram só vocês, mas qualquer um lá fala desse mesmo jeito".
Ao chegar a Salvador, a sensação de quem mora na selva paulistana é de que se está em outro país. A cidade, o ritmo, o sol, o mar, o sotaque, a comida, cada detalhe contribui para acentuar a diferença.
Surpreendi uma paulistana na praia de Stella Maris comentando distraída: "Quando eu voltar para o Brasil preciso...."
E o Brasil era ali.
Como é aqui.
*
Antonio Risério, poeta, crítico, estudioso da cultura baiana -que muda-se em breve para São Paulo- acaba de lançar um livro de poemas com experiências em computador, explorando o repertório aberto, há quase quarenta anos, pela poesia concreta -que, incrivelmente, continua despertando rancores.
Risério lançou recentemente um livro sobre o ambiente de vanguarda na Bahia, que propiciou o surgimento de artistas excepcionais, como Glauber Rocha e a geração tropicalista.
É natural que os irmãos Campos e Décio Pignatari -por essa tradição local, pela proximidade que estabeleceram com os compositores, pelo interesse em relação ao barroco, a Gregório de Mattos e à cultura baiana- tenham ecos em Salvador.
Lá, há um restaurante chamado Noigandres (nome da revista fundada, nos anos 50, pelo grupo da poesia concreta) e um bar com o nome de Pós-Tudo (célebre poema de Augusto de Campos, que deflagrou uma extensa polêmica na década passada).
Chato-boys allowed.
*
"Salve a santa Bahia imortal, Bahia dos sonhos mil, eu fico contente da vida em saber que a Bahia é Brasil".
Letra da famosa canção escrita por um... campineiro.

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