São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1996
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Razões da crise do Estado

ENZO FALETTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os dois livros publicados, quase simultaneamente, por José Luis Fiori, reúnem uma série de escritos elaborados ao longo de uma década (1985-1995), e têm, por certo, inegável interesse para o público brasileiro, já que alguns de seus ensaios se inscrevem diretamente na polêmica político-intelectual que tem lugar no Brasil, cujo caráter e profundidade resulta quase impossível de avaliar para quem observa de fora.
Não obstante, estou convencido que os temas que Fiori coloca são significativos não apenas para os brasileiros como também para todos os latino-americanos que tratam de olhar e pensar suas realidades sem preconceitos nem antolhos. Por outro lado, são muitas e constantes as referências que Fiori faz à América Latina, o que justifica que alguém "que não é da casa" se atreva a tentar dizer algo.
Faz já algum tempo que nos países latino-americanos se discute o tema da capacidade de ação do Estado e as funções que lhe correspondem. Com frequência tal tipo de discussão, tanto no âmbito acadêmico como no âmbito político, pareceria não ir mais além do que repetir os argumentos que em outras partes do mundo se esgrimiam ou ainda se esgrimem. Isto faria supor que os problemas -pelo menos os principais- são os mesmos em todos os lugares e que as possíveis opções têm traços de similitude.
Tal fenômeno não deixa de ser significativo: em vários de seus artigos Fiori refere-se à existência deste poderoso consenso assinalando o modo como se originou e a função que cumpre. Em certa medida pareceria ter lugar o que J. Wallenstein destacou como característica dos atuais Estados: sua participação em um sistema interestatal, que jogaria o papel de "superestrutura política da economia mundial capitalista", de sorte que na medida em que os diferentes países participem desta economia mundial lhes é requerido adequar-se à esta "interestatalidade".
No entanto, tal como foi apontado desde os anos da discussão sobre a dependência, a modalidade do relacionamento externo é um dos elementos que caracterizam a conformação do Estado latino-americano, sendo de igual importância para este processo os modos em que as relações sociais, econômicas e políticas internas se constituem e que dão lugar a peculiaridades que distinguem as experiências latino-americanas de outras.
Fiori faz interessantes análises da especificidade histórica dos Estados latino-americanos e em especial do que habitualmente se conhece como "Estado Desenvolvimentista". Obviamente as maiores referências dizem respeito à experiência brasileira, mas não se trata apenas de mostrar a especificidade aludida, senão que, além disso, passa em revista, em termos críticos, as diferentes interpretações que sobre esse processo elaboraram diversos autores brasileiros ou de outras nacionalidades.
Esta revisão lhe permite mostrar o papel que o Estado tem tido na construção de um certo tipo de desenvolvimento econômico, além da conformação de modalidades de relação social e de constituição de cidadania política. Poderia afirmar-se que em grande medida a discussão atual sobre o Estado gira em torno da consciência da crise e do modo histórico em que se constituíram as articulações entre as três dimensões assinaladas, isto é: a dimensão econômica, a dimensão social e a dimensão política. O desafio está dado pela busca de novas formas de articulação.
Não obstante, não basta constatar a crise das formas anteriores; tal como o faz Fiori, na análise dos elementos que determinaram essa crise é possível encontrar muitas das causas dos atuais impasses, entre elas o problema que significa a heterogeneidade das coalizões políticas, tanto de governo como de oposição, o que incide na dificuldade para sustentar políticas de médio e longo prazo e na necessidade de entregar-se a complexos e desgastantes jogos de "engenharia política" para resolver conflitos de interesses que tendem a expressar-se de um modo estritamente particularista ou corporativo.
É escusado dizer que a heterogeneidade existente influi poderosamente no modo de constituição dos partidos e nas distorções do conjunto do sistema político.
Uma série de conflitos determinaram, como se sabe, a crise da aliança que proporcionava a base de sustentação do modelo conhecido como de "desenvolvimento para dentro": por um lado agudização de tensões entre os componentes da aliança, acrescida da presença de novos setores -principalmente trabalhadores rurais e grupos populares urbanos, que pressionavam por novas demandas- e por outro, ineficácia do Estado para, em tal contexto, manter a estabilidade e atuar com eficiência.
Como resposta à crise do modelo anterior, buscou-se um tipo de desenvolvimento que privilegia o funcionamento de uma "economia de mercado", tanto no plano interno como no modo de relacionamento com o exterior. A nosso juízo, um dos resultados da mudança de modelos tem sido uma transformação dos mecanismos de integração social que, mal ou bem, até esse momento tinham tido vigência. Se no modelo de "desenvolvimento para dentro" o Estado -inclusive com suas ineficiências- tinha jogado um papel chave na promoção de políticas de integração, especialmente por meio das políticas sociais, como educação, saúde, habitação e ampliação da cidadania, o suposto agora era que tal papel "integrador" devia ser cumprido pelo mercado.
Em muitos dos países latino-americanos, a aplicação desta política manifestou-se em uma forte tendência a privatizar funções do Estado, como as mencionadas de educação, saúde, habitação e outras. O primeiro efeito imediato foi uma desestruturação dos graus de coesão social existentes, já que muitos grupos viram perder-se seus mecanismos tradicionais de inserção na sociedade.
Além disso, a tendência na economia de vários países latino-americanos foi que, apesar de alguns importantes resultados -particularmente a contenção das tendências inflacionárias- agudizaram-se os processos de concentração da riqueza, sem que os setores favorecidos pudessem realmente ter acesso a mecanismos de compensação.
Em certa medida, a pugna entre o papel do mercado e o papel do Estado é uma opção entre modos de constituição de racionalidade. Alguns sustentam que esta deriva do funcionamento do mercado -e daqueles que nele detêm o poder, diria Fiori. Outros, ao contrário, postulam que a racionalidade deveria derivar de um projeto constituído pelos diferentes agentes da sociedade e que corresponde ao Estado plasmar numa racionalidade que lhe é própria.
No plano econômico não tem sido alheia à experiência latino-americana uma ação decisiva do Estado na elaboração do projeto de desenvolvimento, que é hoje em dia um dos desafios de maior impacto na profunda transformação tecnológica e produtiva que tem lugar em nível mundial.
A passagem para novas formas de produção e novas formas de consumo obrigam ao desenho de um projeto de futuro elaborando uma perspectiva de longo prazo que implica ações concretas em prol desse futuro desejado.
Mas isso não pode fazer esquecer que no plano social o problema mais grave dos países latino-americanos é a ausência de integração interna que se expressa em um alto grau de desigualdade social: esta não apenas se manifesta em termos de diferenças na distribuição da renda, mas também em profundas diferenças de modo de vida e ausência de valores compartilhados que constituem princípios de identidade nacional. O poder, a riqueza e a renda têm tendido a concentrar-se em grupos que se constituem como privilegiados, quando, em contrapartida, vastos setores ficam em situação de marginalidade e exclusão.
Em suma, pode-se postular que os desafios que enfrentam as sociedades latino-americanas possam resumir-se na busca de uma economia dinâmica e em uma capacidade de constituir processos que assegurem formas de equidade social. Nesse sentido, pode-se considerar decisiva uma participação do Estado, o qual não pode ser concebido como uma instituição à margem ou acima da sociedade que o conforma. O problema é o da constituição plena da sociedade civil -sem marginalização nem exclusão- que se expressa em um Estado que constitui uma de suas formas principais de organização.
Não basta que o Estado expresse apenas determinados grupos organizados, por mais que possam ser considerados como os mais dinâmicos existentes. As sociedades latino-americanas têm se diversificado e é necessário gerar condições para que os diversos grupos se organizem e expressem suas demandas. É necessário, por conseguinte, pensar em um tipo de Estado que, sem negar os conflitos, torne possível a interação de todos os grupos existentes e em que a racionalidade de um projeto surja da interação entre eles.
O livro de José Luis Fiori não esconde os conflitos existentes nem o caráter das opções possíveis; ao contrário, diriam alguns, os coloca francamente em relevo e esse é precisamente seu valor para a discussão latino-americana.
Mais além da polêmica contingente que não cabe eludir, mas na qual -insisto- não tenho nenhuma competência e inclusive seria de muito mau gosto intervir, poderíamos ampliar para a América Latina o que Maria da Conceição Tavares aponta em seu prefácio: "Os textos de Fiori ajudam a descobrir nosso verdadeiro rosto, e não a falsa imagem 'no espelho de Próspero' que nos querem vender. Sem intelectuais como ele, que lutam contra a morte da razão crítica e atacam e desvelam os falsos consensos, a luta pelas idéias no Brasil" -e na América Latina, agregamos nós- "seria ainda mais difícil do que já é".

Tradução de LAURA TAVARES RIBEIRO SOARES

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