São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1996
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Artificialismo como exercício de escrita

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Imagine-se de repente um estranho para todo mundo. De uma hora para outra, sem que se saiba por quê, a família não reconhece você, os colegas de trabalho tampouco, o porteiro do prédio também não. E ainda por cima você foi furtado, está sem documento algum.
É sobre essa boa idéia, erguendo uma alegórica e profícua situação, que o paulistano Carlos Eduardo de Magalhães, 28, constrói "O Sujeito ao Lado", seu primeiro romance.
Tudo começa com o convite para uma festa a fantasia -em que supostamente ninguém deveria mesmo reconhecer ninguém-, organizada para reunir ex-colegas de faculdade. João, o protagonista em questão, vai fantasiado de Juiz, há uma Chapeuzinho Vermelho, um Zorro, uma Gata Borralheira e até uma Carmen Miranda. Obviamente, muita bebida se consome no evento.
O mundo perde a memória de João em seguida, e o livro trata justamente da tentativa que o protagonista faz, desesperadamente, de restaurar sua personalidade, reconhecer-se como indivíduo, diante de uma paisagem urbana familiar -ruas e edifícios paulistanos-, mas ao mesmo tempo fria, e de pessoas que ele conhece, mas para as quais não passa agora de um rosto impreciso, anônimo.
Magalhães, que estreou com o livro de contos "Zero" (Editora Paulicéia, 1994), retoma aqui uma capacidade rara em jovens autores: a de incluir na obra personagens variados, em tipo e idade, sem cair na caricatura fácil.
Em busca de um estilo, o autor chega a momentos interessantes, como o que se segue:
"E o rosto da velhinha, o retrato na mão, o desculpe o resfriado, o você esqueceu o cigarro, né, filho?, desarmou João de sua raiva, é, foi isso que esqueci, fumar faz mal para saúde, estou tentando parar, tia, desculpa a pergunta, é..., nada não, fala!, como foi que..., foi na praia, mas ele morreu feliz, filho, nunca esqueça disso (...)".
Essa busca, porém, trai por vezes certa imaturidade literária. Ao ganhar explicitude, refletindo uma ansiedade não-contida, acaba por gerar soluções voláteis, desnatura o fluxo da narrativa, debilita a obra. Assim, tal como boas construções, também é fácil encontrar em "O Sujeito ao Lado" casos de "sacadinhas" estilísticas infantis e totalmente dispensáveis.
Por exemplo: "Sem rancor, raiva, nada. Vazio, João sentia-se vazio, e vazio estava; não comera nada". Ou esta frase: "Uma saleta na penumbra, dois sofás separados por uma mesinha que suportava um cinzeiro" (Magalhães poderia tranquilamente ter escrito "mesinha com um cinzeiro em cima", mas quis fazer algo "diferente"). Ou ainda dar a todos os membros de uma família nomes começados com jota.
Soa falso, quer-se "literário" demais, cai artificialmente, como um exercício de escrita, apenas isso. Pode divertir o autor até, mas dá picadas no enredo, cansa o leitor. Não é por aí que se define um estilo.
Em casos assim, mais vale a solução de mordacidade e franqueza encontrada pelo belga Jean-Philippe Toussaint em "O Banheiro", de 1985, infelizmente a única obra dele traduzida no Brasil (Nova Fronteira, 1989).
O narrador desse livro, dono de uma linguagem descontraída e linear, é levado a certa altura, por força de sua história, a fazer uma digressão filosófica, por assim dizer; e ele a faz. Detectando no entanto a discrepância entre esse pequeno trecho e o quadro narrativo até então pintado, opta por concluí-lo com uma interjeição de fina ironia. Ficou da seguinte forma:
"Assim é possível realizar que o movimento, por mais fulgurante que seja na aparência, tende essencialmente à imobilidade, e em consequência, por mais lento que possa às vezes parecer, arrasta continuamente os corpos para a morte, que é imobilidade. Olé."
Eis, vindo de Toussaint, algo simples e cativante, bom de ler, original, pequena lição de estilo.

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