São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1996
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A destruição do mito da palavra

MIRIAM CAMPOLINA DINIZ PEIXOTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A tradução do clássico "Os Sofistas", de William K.C. Guthrie, publicado na Inglaterra em 1969, representa uma oportunidade de ir de encontro a um momento privilegiado da história ocidental -a idade clássica (séc. 5 a.C.) da antiguidade grega-, na qual questões que encontram ainda ressonâncias estavam sendo, pela primeira vez, trazidas à ordem do dia.
Junto com Mário Untersteiner, que o precedeu com o seu "I Sofisti", de 1948, Guthrie refaz um capítulo da história da filosofia grega obscurecido pela tradição. Tomando como ponto de partida uma revisão da literatura concernente ao assunto, o autor se empenha em desmascarar as tendências que tiveram lugar na apresentação do movimento sofístico, retirando-o de sua posição marginal.
Porém mais do que recuperar o acontecimento sofístico, tratá-lo com rigor e reconhecer sua importância na história, trata-se para Guthrie de recuperar o contexto mesmo em que tal movimento floresceu, identificando na sociedade da época as questões que se tornariam objetos de sua reflexão e orientariam sua intervenção na práxis política.
A investigação revela uma outra face da democracia grega. Nos seus bastidores, vislumbra-se a crise que surdamente começava, no momento de seu apogeu, a minar suas bases e a colocar em curso um processo que culminaria, no século seguinte, na dissolução do espaço político clássico.
"Mestres da sabedoria prática", "professores ambulantes", os sofistas não constituíram uma "escola filosófica". Empenhados em preparar os jovens para a práxis política, eles se dedicaram de modo particular, e por caminhos diferentes, ao desenvolvimento da "arte retórica", ao mesmo tempo que revelaram a ambiguidade que caracteriza o terreno da linguagem.
Ao tocar na rede frágil do tecido político, a reflexão desenvolvida pelos sofistas concorreu para tornar evidentes os limites e conflitos que sustentavam a aparente harmonia da cidade clássica. A antítese "nomos" (lei) / "physis" (natureza), lei escrita e lei não-escrita, a parcialidade da igualdade e da justiça, o relativismo dos valores e sua consequência para a nascente reflexão ética e a instigante relação entre retórica e filosofia são algumas das questões que alçaram vôo em seus discursos.
Questões nunca antes cogitadas nos quadros de uma sociedade para a qual a lei e o poder possuíam origem divina e se encontravam, de certa forma, enraizados numa noção de natureza que abrigava toda e qualquer forma de existência. Lado a lado com os tragediógrafos, os sofistas colocaram em relevo o caráter trágico da existência humana, conclamada, permanentemente, a fazer valer sua natureza lógica e política sobre a animal.
Será sobretudo no campo da linguagem, em tempos de crescente autonomia deflagrada pela perda do poder presentificador da palavra, que se veria cavado, de uma vez por todas, o abismo entre o mundo das coisas e o das palavras.
Com sua reflexão sobre a linguagem, os sofistas deram a este instrumento fundamental da vida política e cultural grega um novo vigor, ao mesmo tempo que abalaram toda a estrutura que até então se sustentou sob a égide de uma palavra dotada de poder divino e portadora da verdade.
Revelaram, em última instância, que, se a palavra é o principal instrumento da práxis política, ela é também sua principal ameaça, quando se trata de um homem distanciado de sua condição de animal lógico-político.

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