São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1996
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Uma viagem luminosa

JOSÉ J. VEIGA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se houver por aí alguém pensando que não vale mais a pena ler contos novos porque todos os bons contos possíveis já foram escritos, esse deve abrir exceção para o novo livro de Lygia Fagundes Telles, ou vai perder momentos raros de boa leitura.
A partir de "Ciranda de Pedra", de 1954, cada livro da autora, mesmo trazendo a sua marca, parece escrito por outra Lygia. Quero dizer, ela não fica parada nem se repete. Lygia confirma uma teoria que criei para meu uso pessoal, a saber: ninguém aprende a escrever de uma vez por todas. O livro que estamos escrevendo nos ensina -mas só a resolver os problemas propostos por ele; o que vamos escrever a seguir traz ele também os seus desafios e as suas dificuldades inerentes. Tudo indica que Lygia também descobriu isso.
E o que foi que Lygia viu ao seu redor, ou ao redor de sua mente ou dentro dela, e que disparou o mecanismo lygiano de criação? Obviamente o que a sua inteligência e a sua sensibilidade focalizaram em dado momento -instantes, lampejos, sementes, pensamentos, lembranças.
A leitura de uma revista muito antiga de cinema noticiando as consequências de uma noitada "alegre" em Hollywood nos anos de 20 e a ligação da consequente tragédia ao fascínio que astros e estrelas do cinema americano começavam a exercer nos jovens do mundo inteiro. Ou aquele teatro perverso que as pessoas costumam desempenhar umas para outras fingindo que é amor, ou afeição, ou dedicação, as partes sabendo que é falso, mas fazendo de conta que é verdadeiro. Os pequenos grandes dramas que todos nós vivemos em um momento ou outro e que acabam ou nos enriquecendo ou nos insensibilizando ou nos mutilando. O terno, tranquilo, sublime amor brotando e florescendo quando parecia não haver mais tempo nem lugar para ele. Ou uma visão nova da verdade antiga de que a convivência íntima e diária com outras pessoas num mesmo espaço não leva necessariamente ao conhecimento recíproco. Ou uma lição de sabedoria que pode ser resumida assim: enquanto aquela mudança necessária e muito desejada não acontece, vivamos sem desesperar. Ou uma versão muito convincente da tese de que o sentimento do mundo pode estar em tudo, até em um anão de pedra fincado num jardim.
Todo escritor precisa ser astucioso em benefício do leitor, e a astúcia de Lygia está em nos passar a impressão de que ela não inventou as histórias que conta. É como se as tivesse visto acontecendo, as tivesse anotado e transcrito para nós. Quer dizer então que é fácil escrever? Basta ver, anotar e transcrever? Não exatamente. Olhar todo mundo pode. Ver já é mais complicado. Todo mundo vê -mas vê o quê? O que está patente na superfície. Já o escritor precisa ver o que está na superfície mais o que está por baixo mais o que está em volta mais o que está dentro, invisível aos distraídos. Por ter essa visão profunda e abrangente Lygia é a escritora que é.
É preciso dizer alguma coisa também sobre a linguagem de Lygia. Ao longo do seu trabalho -do seu aprendizado incessante- ela foi desbastando a frase quase que ao ponto de criar uma sintaxe própria, eliminando certas partículas de presença tão óbvia que bem podem ficar subentendidas. Exemplos: "Filô! Filô! E a gatinha vinha correndo e berrando com aquele rabo aceso, uma antena". "... Aquele ar aborrecido com que recebia uma construção que não deu certo, era arquiteto." "Hoje fui ao túmulo de Gina, e de longe via as rosas vermelhas na jarra do lado esquerdo, Oriana veio ontem." "Em casa de artista deve ser assim em noite de festa, teve uma festa."
Cada novo livro de Lygia é uma viagem fascinante. Viaje com ela neste "A Noite Escura e Mais Eu". A escuridão do título é enganosa. Intelectual e emocionalmente trata-se de algo luminoso.

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