São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Atwood se perde em panfleto feminista

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Margaret Atwood, 56, é uma escritora canadense famosa por sua literatura de tom feminista. No Brasil, é mais conhecida pelo romance "A Mulher Comestível" (Ed. Globo). Já publicou 25 livros, entre poesia, prosa e não-ficção. "A Noiva Ladra" é seu oitavo romance.
O livro começa com uma página inteira de agradecimentos, procedimento normal em teses acadêmicas, mas não em romances. Lembra também aqueles discursos que atores de cinema fazem depois de receber o Oscar. A escritora agradece desde aos livros sobre guerra, que consultou para construir o "pano de fundo" de seu texto, até a uma parente, Lenore Atwood, de quem tomou emprestada a (original? significativa?) expressão "meleca cerebral".
Feitos os agradecimentos e dadas as instruções, começam as quase 500 páginas que poderiam, sem qualquer problema, ser reduzidas a 150. Pouparia precioso tempo ao leitor bocejante.
É a história de três amigas, Tony, Roz e Charis, cinquentonas que vivem infernizadas pela presença (em "flashback") de outra amiga, Zenia, a noiva ladra, inescrupulosa "femme fatale" que vive roubando os homens das outras.
Vilã meio inverossímel -ao contrário das demais personagens, construídas com certa solidez-, a antogonista Zenia não se sustenta, sua maldade não convence, sua história não emociona. A narrativa desmorona, portanto, a partir desse defeito central. Zenia funcionaria como superego das outras, imagem do que elas gostariam de ser, mas não conseguiram, reflexo de seus questionamentos internos -eis a leitura mais profunda que se pode fazer desse romance nada surpreendente e muito óbvio no seu propósito.
Segundo a própria Atwood, o propósito era construir, com Zenia, uma personagem mulher "fora-da-lei", porque "há poucas personagens mulheres fora-da-lei". As intervenções do discurso feminista são claras, panfletárias disfarçadas de ironia e humor capengas. A personagem Tony, por exemplo, tem nome de homem (é apelido para Antonia) e é professora de história, especialista em guerras e obcecada por elas, assunto de homens: "Historiadores homens acham que ela está invadindo o território deles, e deveria deixar as lanças, flechas, catapultas, fuzis, aviões e bombas em paz".
Outras alusões feministas parecem colocadas ali para provocar riso, mas soam apenas ingênuas: "Há só uma coisa que eu gostaria que você lembrasse. Sabe essa química que afeta as mulheres quando elas estão com TPM? Bem, os homens têm essa mesma química o tempo todo". Ou então, a mensagem rabiscada na parede do banheiro: "Herstory Not History", trocadilho que indicaria o machismo explícito na palavra "História", porque em inglês a palavra pode ser desmembrada em duas outras, "his" (dele) e story (estória). A sugestão contida no trocadilho é a de que se altere o "his" para "her" (dela).
As histórias individuais de cada personagem são o costumeiro amontoado de fatos cotidianos, almoços, jantares, trabalho, casamento e muita "reflexão feminina" sobre a infância, o amor etc. Tudo isso narrado da forma mais achatada possível, sem maiores sobressaltos, a não ser talvez na descrição do interesse da personagem Tony pelas guerras.
Mesmo aí, prevalecem as artificiais inserções de fundo histórico, sem pé nem cabeça, no meio do texto ficcional, efeito da pesquisa que a escritora -em tom cerimonioso na página de agradecimentos- se orgulha de ter realizado.

Texto Anterior: Uma viagem luminosa
Próximo Texto: Artificialismo como exercício de escrita
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.