São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1996
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"Esquerda 21" e o liberalismo

ROBERTO FREIRE; JOSÉ GENOINO; DOMINGOS LEONELLI

O mercado, por si só, em parte alguma do mundo é solução automática para as crises
ROBERTO FREIRE, JOSÉ GENOINO e DOMINGOS LEONELLI
Atribuímos a Roberto Campos o papel de um dos próceres mais transparentes do que se convencionou chamar de neoliberalismo no Brasil. E daí reconhecermos a sua coerência, aliás nem sempre comum a tantos liberais de plantão no Congresso, que costumam deixar suas convicções ideológicas de lado quando a questão é a de se beneficiar dos recursos e sinecuras do Estado.
Basta ver a crise do sistema financeiro, tendo como carro-chefe o caso do Econômico, e a dos grandes produtores rurais, só para citar algumas. Mas não o consideramos uma referência obrigatória na discussão dos novos paradigmas do socialismo, tendo em vista que, mesmo argumentando em sentido contrário, mostra estar com a cabeça presa no que ele mesmo chama de "capitalismo pré-30" ao desconsiderar o papel necessário e positivo do Estado na regulação da esfera social e econômica.
À guisa de comentário acerca da revista "Esquerda 21", Roberto Campos, exercitando um dos seus hobbies favoritos -a crítica à esquerda- converteu-a em "álbum de formatura, com retratinhos e frases para a posteridade da família" (Folha, 24/12/95).
Os juízos emitidos por Campos partem de quem, obviamente, não entendeu a proposta contida na revista. Nunca ela se propôs a se transformar em uma espécie de "Marxism Today" ou "Problems of Comunism" brasileira, empreendimento que certamente exigiria outro tipo de postura editorial.
A revista, elaborada sob a coordenação de deputados e senadores, pretende tão-somente discutir, pelo ângulo político-parlamentar e com a colaboração de intelectuais e acadêmicos, os novos paradigmas da esquerda e do socialismo e a agenda viva do país, tendo como foco as matérias que tramitam no Congresso e assuntos de interesse da comunidade.
Tais paradigmas, com a crise do chamado socialismo real -e também do próprio capitalismo industrial (tão caro aos "neoliberais")-, estão na ordem do dia em todo o mundo e de forma extremamente dramática em nosso país.
Em um dos pontos em que se detém mais tempo, Campos reclama que a revista não abordou em seus artigos o tema "mais atual do mundo", qual seja, a "tecnologia da transição para a economia de mercado". Existe mesmo tal tecnologia? É difícil acreditar e, se existe, está em crise: haja visto a confusão que se instalou no Leste europeu e as sucessivas derrotas eleitorais daqueles que patrocinaram a tal "tecnologia".
Ao examinar as mudanças que ocorrem na ex-URSS e na China, Roberto Campos parece manifestar simpatias para uma "tecnologia da transição" que promova a abertura econômica, mas que mantenha a ditadura política, como é o caso chinês. Nós da esquerda democrática achamos que "as livres preferências dos indivíduos" só podem prosperar num ambiente de liberdade política, que é condição da liberdade e do equilíbrio na esfera econômica.
O mundo vive hoje um profundo processo de transformação onde não só o socialismo real entrou em colapso, mas a própria hegemonia neoliberal da era Thatcher/Reagan está se dissolvendo nas novas potencialidades e novos dramas da humanidade. O mercado, por si só, em parte alguma do mundo é solução automática para as transformações e crises sociais e econômicas, como acreditam alguns liberais simplificadores.
O mercado é tão-somente uma instância socioeconômica que não pode ser negligenciada na construção de qualquer alternativa que se queira democrática, mesmo que socialista. Aliás, tal debate é aprofundado no segundo número da revista, que circula este mês, com a participação do presidente FHC que, entre interessantes considerações, se define como de esquerda e garante que jamais foi "neoliberal".
Quem lê a revista "Esquerda 21" e o artigo do deputado Roberto Campos pode constatar, de imediato, as diferenças na abordagem dos temas sociais e políticos do nosso tempo. Para a esquerda, a utopia "liberdade, igualdade, fraternidade" se recupera e se materializa na construção dos processos democráticos das sociedades, onde as novas contradições entre cidadania de cada um e os coletivos instituídos sejam possíveis de se solucionar sem a tradicional arrogância do poder e sem a guerra.
Para Campos, essa utopia, que foi genitora das democracias modernas, resultaria sempre em denuncismo sórdido, em "guilhotina, paredón, gulag" e, no caso brasileiro, em "patrulhamento". Nem a democracia dos antigos e nem a democracia dos modernos surgiram vestidas apenas com couraças "técnicas" ou "lógicas". O neoliberalismo quer guilhotinar os valores humanísticos e civilizatórios que sempre foram congênitos à democracia, promovendo em seu lugar um individualismo selvagem que gera exclusão e anomia.
O Estado democrático e sua dimensão pública, para a esquerda, ainda é um instrumento insubstituível para a ordenação dos interesses humanos, junto com a sociedade civil e o mercado, quando se trata de promover o desenvolvimento que busque eliminar a exclusão social. O Estado não deve tutelar a liberdade dos indivíduos, mas sem a sua mediação fica difícil de se imaginar um sentido civilizatório nas sociedades.
Para Campos, o Estado é sinônimo de opressão (paradoxalmente para ele que sempre foi uma figura do Estado e um dos principais artífices do estatismo brasileiro), um "sistema de circuitos complicadíssimos, cuja lógica é, digamos, a amante do ministro ou a conveniência do partido -não as preferências dos indivíduos", como diz seu artigo.
Para nós a razão não é o Estado -e nisso concordamos com Campos-, mas com certeza também não é o mercado -e aqui nos distanciamos muito.

ROBERTO FREIRE, 53, é senador pelo PPS de Pernambuco e presidente nacional do partido.
JOSÉ GENOINO, 49, é deputado federal pelo PT de São Paulo.
DOMINGOS LEONELLI, 49, é deputado federal pelo PSDB da Bahia.

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