São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1996
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Córtex cerebral, amor e equilíbrio

IVÁN IZQUIERDO

Psicólogos americanos demonstraram que o equilíbrio emocional, aquele que permite, por exemplo, que uma criança de cinco anos aprenda a protelar uma recompensa (uma bala) para poder conseguir um benefício maior (ir ao cinema mais tarde), é mais importante que a inteligência como determinante do sucesso na vida adulta. Nos EUA muitas empresas importantes já utilizam uma medida chamada "Q.E." (quociente emocional) em vez do famigerado "Q.I." (quociente intelectual) na escolha do pessoal de escalão superior. De nada vale, para um candidato a gerente, ser inteligente e saber computação se é um estourado ou um assediador sexual.
O equilíbrio emocional não é inato: se adquire, e não necessariamente em colégios caros; as crianças aprendem em casa ou com os pares a não se atirar no chão, aos berros, para obter determinado brinquedo; aprendem a entender que a satisfação instantânea dos desejos não é sempre o melhor.
Equilíbrio emocional não significa insensibilidade, senão todo o contrário. Equilíbrio emocional quer dizer sentir as emoções e reagir a elas, mas mantendo um grau de controle sobre a resposta. A criança que protela uma bala para ganhar algo melhor gosta da bala como qualquer outra, mas aprende que há coisas mais importantes. Insensibilidade só têm os psicopatas, os assassinos em série: os protótipos do desequilíbrio. Quando se lhes mostra a fotografia de uma de suas vítimas, ficam imutáveis.
As emoções dependem dos afetos e sentimentos. Sabe-se que estes têm um papel importante na vida cognitiva do sujeito; na memória, por exemplo, e em tudo o que dela depende. Que é muito: a memória nos permite ser quem somos; é a fonte de nossa individualidade como pessoas ou como comunidades. Eu sou quem sou porque me lembro quem sou, me lembro dos fatos da minha vida. Um país é um país porque lembra de sua história, de seu passado coletivo. Daí a tristeza infinita das pessoas que padecem do Mal de Alzheimer; ou dos países que esquecem de sua própria história.
Aprendemos e evocamos melhor as memórias que se vinculam com nossos afetos e sentimentos. Não lembramos, ou lembramos mal, as coisas afetivamente insignificantes. Lembramos para sempre do colo da mãe ou dos olhos de nossa primeira namorada. Esquecemos para sempre o número telefônico do encanador ou aquele comercial "xarope" que vimos na televisão há dez minutos.
Dos afetos e sentimentos, o mais importante é o amor. É graças ao amor que podemos chegar a adquirir aquele equilíbrio emocional que mencionamos acima; sem ele não há equilíbrio possível. Os psicopatas, por exemplo, não sabem e não conseguem aprender o que é o amor. Matam porque tanto faz.
O amor tem muitas faces. Uma delas é o carinho, a expressão do amor na qual nós, latinos, somos especialistas; mas não é a mais importante: os suecos e os ingleses amam tanto quanto nós, e o expressam muito menos. A saudade do objeto amado, o desejo de seu bem-estar, são outras. O amor envolve também a contenção do nível de agressão em relação à pessoa amada: ninguém bate no filho como bateria num inimigo.
São parte do amor o conjunto de atitudes que denominamos civilidade ou educação: se gostamos de morar onde moramos (ou simplesmente não temos outro melhor aonde ir), não vamos brigar com os vizinhos; vamos, ao contrário, tentar ser amáveis com eles. A mesma coisa no trânsito. Se gostamos de chegar vivos em casa, tentaremos ser amáveis com os demais motoristas e não arriscar acidentes imprevisíveis.
Estudos recentes demonstraram que o que chamamos amor aparece como um salto evolutivo. Não existe naqueles animais inferiores que não possuem córtex cerebral. As aranhas e os répteis abandonam ou devoram seus filhotes; uma das primeiras coisas que o filhote de cobra tem de aprender é a fugir da mãe. Já a rata, que possui um córtex rudimentar, protege seus filhotes com carinho e só os devora quando tem muita fome ou percebe que estão doentes. A cadela, com um córtex bem mais desenvolvido, é uma mãe exemplar, e é até capaz de amar outros animais ou pessoas. Os golfinhos e os primatas, cujo córtex é maior ainda, são capazes de se sacrificar por outros de sua espécie.
Os humanos, então, somos capazes de amar até o desespero, até deixar-nos morrer pela pessoa ou até pela comunidade ou pelas idéias que amamos. A característica principal dos seres humanos é, justamente, nossa capacidade de amar; o amor nas suas múltiplas e variadas facetas, que vão desde o carinho até a saudade, da saudade até a educação.
É interessante que os aspectos básicos da memória, a capacidade de gravar e lembrar informação, existem em todas esses animais. Ratos, lagartos, gorilas e homens fazem e lembram memórias através de processos neuronais semelhantes, em parte usando regiões subcorticais do cérebro. Os afetos e sentimentos complexos, o amor e a modulação cognitiva por eles, aparecem com o córtex e se desenvolvem quanto mais se desenvolve o córtex.
Tiremos a inteligência de um humano e teremos um humano burro. Tiremos o amor e não teremos mais um ser humano, mas algo parecido com um réptil.
Dados científicos: Q.E. vale mais que Q.I., o amor depende do córtex, a cognição é regulada pelos sentimentos. Não valerá a pena, a partir desses dados, repensar um pouco nossa sociedade?
Porque, aos poucos, estamos nos aproximando da sociedade decorticada, do mundo réptil, de um Jurassic Park pseudo-neoliberal. Porque hoje, aqui, rouba-se do mais pobre, deixa-se morrer o doente, castiga-se o velho, pais batem nos filhos até a morte, exploram-se crianças, vizinhos mandam matar vizinhos. O ódio, não o amor, é tema de campanha política; o "conhecimento" é tudo. E a mídia anestesiada faz esforços para perder a memória de nosso passado coletivo e, com ela, toda noção de quem somos.

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