São Paulo, quinta-feira, 18 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Danton na floresta amazônica

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

De Gaulle afirmou certa vez que a integração européia só poderia se fazer pela concertação dos governos legítimos, nunca pelas decisões de "tecnocratas apátridas". Para ele, as pretensões dos comissários de Bruxelas de dar ordens aos governos europeus eram irrisórias. "A supranacionalidade é absurda", dizia ele. "Nada está acima das nações, a não ser o que os seus Estados decidam em conjunto."
Faço essa citação não para discorrer sobre a problemática unificação européia, mas para referir-me, mais uma vez, à nossa situação nacional. Nas minhas divagações, ocorre-me às vezes indagar se a pior forma de dominação, a mais eficaz e mais difícil de combater, não é justamente a que se faz pela interposição de uma classe dirigente e de uma tecnocracia autóctones e apátridas.
Não só no Brasil, mas em grande parte da América Latina, as equipes governamentais, em especial na área econômica, vêm sendo marcadas pela presença do dirigente que fala sem sotaque a língua local, carrega alguns dos cacoetes nacionais, mas é no fundamental um estrangeiro, uma espécie de exilado, identificado intelectualmente e -o que é mais grave- emocionalmente com os centros internacionais de poder.
Quem achar que estou exagerando, que observe com cuidado o comportamento e as manifestações oficiais. Conformados com a repetição ritualística e mecânica de fórmulas prontas, os altos funcionários do governo brasileiro vêm desempenhando, sem convicção e sem arte, papéis vagabundérrimos.
É penoso ver pessoas com boa formação profissional que, dez ou 15 anos atrás, pareciam espíritos independentes e críticos, das quais se poderia esperar uma contribuição importante ao desenvolvimento nacional, reduzidos agora à condição de autômatos, máquinas repetidoras dos "consensos" engendrados no exterior, incapazes em geral de um sopro de pensamento próprio. Parecem conservados em formol, embalsamados, verdadeiras múmias. Só falta algodão nas narinas!
Há alguns anos (deve ter sido por volta de 1992, 1993), encontrei-me com um desses executivos brasileiros que trabalham para instituições financeiras em Nova York. O sujeito discursava entusiasmado sobre o governo Salinas. "Os mexicanos são de altíssimo nível, estudaram todos nos EUA, falam inglês como americanos, usam a linguagem que o mundo entende" etc. etc. Ouvi aquilo tudo em silêncio e limitei-me a ponderar que faltava ao governo mexicano um pouco de independência.
Ora, é preciso reconhecer que, na América Latina, independência é um conceito de sabor utópico, quixotesco. O meu interlocutor respondeu irônico: "mas, francamente, independência! Para quê independência?"
Essa reação, embora de uma franqueza pouco habitual, é bastante representativa do que passa pela cabeça das nossas elites governamentais e não-governamentais. Não é preciso ir muito longe. Basta ver a forma como está sendo conduzida a questão do Sivam, pelo Executivo e pelo Senado.
Anteontem, enquanto FHC e outros lembravam frase de Danton ("De l'audace, encore de l'audace, toujours de l'audace") em casa do "Rei de Mombaça", o brigadeiro Ivan Fronta era sumariamente impedido de depor no Senado, insultado e quase agredido fisicamente porque teve a audácia de contestar o processo de aprovação do Sivam. Nesse teatro do absurdo, coube a ACM representar o papel de Robespierre, o incorruptível...
Infelizmente para nós brasileiros e latino-americanos, desenvolvimento sem independência é uma ilusão, uma peça de quinta categoria.
O México é um caso impressionante, que precisa ser lembrado e relembrado. Esse país passou um longo período seguindo ao pé da letra as recomendações "consensuais" das entidades multilaterais de crédito, do governo americano e dos centros financeiros internacionais. Viveu anos sob o aplauso geral e entusiástico da "comunidade internacional". Era um exemplo propagado a sete ventos. E entrou por um cano deslumbrante.
Não temos outra alternativa senão tentar recuperar a capacidade de pensar por conta própria. Poderíamos começar, por exemplo, reavaliando a questão do Estado nacional. O que nos cabe, antes de mais nada, é preservá-lo e fortalecê-lo, quando mais não seja porque o espaço nacional é por enquanto o único em que se pode praticar a democracia, ainda que precariamente. Como lembrou Paul Singer, em artigo publicado na Folha no ano passado ("O Estado nacional é um imperativo democrático", de 19 de março de 1995), é só nesse espaço que os cidadãos podem exercer o direito de escolher os seus representantes para em seu nome exercer poderes e regular os interesses coletivos.

Texto Anterior: Público e privado; Interesse do auditor; Motivação anterior; Questão de competência; Sem interferir; Promoção na matriz; Nova direção; Nova fábrica; Dose exclusiva; Programa alternativo; Desvio de finalidade; Estoque elevado; Em diversificação; Oferta pública; Parecer do ex-auditor; Normas contábeis; Fidelidade reafirmada; Aposta na privatização
Próximo Texto: O Plano Real e o consumo de alimentos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.