São Paulo, sábado, 20 de janeiro de 1996
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Thiago e o Rio

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Outro dia, em conversa com amigos, concordamos em que o Rio, de uns tempos para cá, ficou mais triste. Muitas são as causas, mas para mim a culpa é do Thiago de Mello, que decidiu ir morar no Amazonas. Ele foi um personagem dos anos 50 e 60, exercia o ofício de poeta, amante e amigo com uma exuberância digna e pasmosa.
No livro sobre a Copa de 62, no Chile, Mário Filho termina um capítulo com uma frase antológica: "Era o Thiago!". Não vem ao caso saber o que estava havendo ou não havendo. Era o Thiago e pronto. Sozinho, ele era um fato, um acontecimento, um evento melhor do que esses que o César Maia anda fabricando sem gosto e imaginação.
Quando voltou do Chile, onde fora adido cultural, Thiago trouxe duas novidades: sua mulher, Ana Maria Vergara, e uma canção chilena que ele cantava, e tanto cantou que eu a aprendi e a usei no trato com as passionárias da época, que eram muitas e se sentiam motivadas pelas grandes causas.
Lembro o verso em que o Thiago botava emoção especial na voz e no gesto: "hay un salce que llora, que llora, que llora porque yo la quiero...". Esse salgueiro que chorava, chorava e chorava devastou corações e carnes aqui pelo Rio, e Thiago iniciou sua fase de apóstolo, vestiu-se de branco, colocou uma foto de Neruda em seu apartamento, publicou "Faz escuro mas eu canto", dedicando-me seu poema mais famoso, "Os Estatutos do Homem". Por causa dessa dedicatória comprou uma briga com Manuel Bandeira, seu padrinho e compadre.
No dia em que morreu Mário Filho, na hora de ir para o cemitério, Nelson Rodrigues disse que iria com o Thiago e comigo, um recurso para se livrar dos chatos que o importunavam. Fomos os três, espremidos no meu carro, atrás do Mário que passava pelas ruas da cidade que ele também tanto alegrou. De repente, levando o irmão à sepultura, Nelson confessou que invejava o sucesso de Thiago com as mulheres.
Na prisão de 1965, Thiago foi o primeiro a ser interrogado. Depois fui eu. Ao entrar na cela da PE, sem saber como de lá sairia, ouvi a voz de Thiago do outro lado do corredor, saudando-me: "Companheiro da manhã!". Eu me senti em casa.

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