São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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Agricultor convive com cobras

CRIS GUTKOSKI
DA AGÊNCIA FOLHA, EM PIMENTEIRAS (PI)

O agricultor José Pereira, 71, mora na mesma caverna na Serra Grande há 37 anos. Dos 11 filhos que criou sob as pedras, seis trabalham hoje como vendedores de tecido em São Paulo e Porto Alegre.
"Puxaram cobra pelos pés um bocado de tempo e depois foram procurar uma vida mais fácil."
A perigosa proximidade com cobras caninanas e cascavéis não o perturba. Para Pereira, pior era o tempo em que trabalhava como lavrador sem terra no Ceará e precisava entregar boa parte da produção para o dono da fazenda.
"A gente sofria muita humilhação", recorda. "Chegava a época da colheita, e o dono soltava os bois dele para comer a roça", conta o agricultor.
Pereira refugiou-se na caverna com a família em 1959 e hoje é dono de 20 hectares em terreno íngreme, onde planta mandioca, milho e feijão de forma rudimentar.
Busca água a 2 km de distância, num dos raros poços que abastecem os habitantes de cavernas próximas ao povoado de Curral de Pedra, em Pimenteiras.
Para subir e descer as encostas acidentadas que levam ao poço, Pereira conta com a ajuda do jegue Canário. Pereira também cria porcos e galinhas na casa de pedra.
Em entrevista à Agência Folha, o lavrador elogiou o Plano Real, mas afirmou que até hoje não teve dinheiro para comprar e transportar pela serra as telhas que lhe permitiriam abandonar a caverna.
Pereira casou três vezes. O filho mais novo tem 4 anos, e a terceira mulher, 27.
"Já avisei que, se não andar nos eixos, arrumo outra."
*
Agência Folha - Como é viver na caverna?
José Pereira - Aqui para nós é bom, é tão descansadinho, ninguém briga. A gente se acostuma.
Agência Folha - O sr. não teme que a pedra caia?
Pereira - Não, acho essa casa mais segura do que a que a minha família tem em Juazeiro do Norte (CE). Aquela foi nós que fizemos, e essa nós já achamos pronta, feita por outro ser superior.
Agência Folha - Como o sr. se protege das cobras e insetos?
Pereira - A gente se enrola com eles toda hora. As cobras vivem nas pedras e brincam com nós aqui dentro. Tem umas bichinhas: caninana, cascavel e outras cobrinhas desse tamanho (mostra uma vara seca de meio metro).
Agência Folha - Vocês matam as cobras?
Pereira - As que nós vemos, nós matamos; as que nós não enxergamos estão vivendo aqui dentro com a gente. Não mexem com nós e nós também não vamos atrás delas. Eu e meus filhos nunca fomos picados, mas dois vizinhos foram e viajaram (morreram).
Agência Folha - Seus filhos, quando eram pequenos, gostavam de morar aqui?
Pereira - Achavam bom, tinha muita diversão aqui. Caçar de espingarda, tirar o mel. Achavam bom trabalhar na roça, principalmente quando chegava a fartura.
Agência Folha - O sr. nunca pensou em construir uma casa?
Pereira - Mas e as condições? Não dá e a gente se conforma, já achou essa casa pronta. Vontade nunca faltou de fazer outra. Casa de palha não, que aqui até isso é difícil de conseguir. Tem telha no Ceará, só que é muito cara.
Agência Folha - Por que o sr. precisou sair do Ceará?
Pereira - Por causa da terra. Não tinha terra para mim lá. E a gente sofria muita sujeição trabalhando na terra dos outros. Chegava a época da colheita, e o dono da fazenda soltava os bois dele para comer a nossa roça.
Agência Folha - O sr. sabe quem é o presidente da República?
Pereira - Não é aquele da mãozinha (mostra os cinco dedos)? O Fernando Cardoso Henrique (sic). Ouço rádio de vez em quando.
Agência Folha - O que o sr. está achando do governo dele?
Pereira - Para mim, já houve melhora. Pior seria se as coisas continuassem subindo. Tem uma incomodação grande porque o que se planta não vale nada, mas pelo menos o que se compra é barato.
Agência Folha - O que o governo poderia fazer para ajudar lavradores como o sr.?
Pereira - Se aparecesse água aqui, já era um descanso na nossa vida. A gente vive só com esses buraquinhos (cavidades que enchem de água na época das chuvas) que Deus deixou nas pedras. Deus é um bom pai.

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