São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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Como afundar um país

ALOYSIO BIONDI

Que tal tomar um empréstimo hoje, e só pagá-lo daqui a 18 anos, sem precisar pagar uma única prestação durante esse tempo todo? Impossível? Não. É possível, sim, no "capitalismo brasileiro", com o governo a serviço dos grupos econômicos. Há poucos meses, o BNDES, banco estatal, emprestou nada menos de US$ 250 milhões a uma grande empresa nacional, nessas condições.
Quem paga a conta? O Tesouro Nacional. Você, cidadão, o contribuinte. Não pense que se trata de uma negociata, feita às escondidas. Nada disso. As equipes econômicas que vêm dominando o governo federal e os governos estaduais fazem esse tipo de operação frequentemente.
Têm até um nome pomposo para elas: "reengenharia financeira", isto é, operações em que o dinheiro não é entregue diretamente ao felizardo, o que poderia provocar um escândalo.
Para melhor compreensão dessa "reengenharia financeira", basta descrever a operação realizada pelo BNDES. A grande empresa, "quebrada", pediu empréstimos ao banco estatal. Em lugar de dinheiro vivo, o BNDES lhe entregou títulos do Tesouro Nacional, para que ela os revendesse no mercado e pagasse dívidas.
Do total de US$ 250 milhões, US$ 100 milhões vencem no ano 2000 e US$ 150 milhões no ano 2013. Em ambos os casos, a empresa nem precisa pensar na dívida: seu único compromisso é devolver o dinheiro ao BNDES, nas datas de vencimento.
Ao anunciar a operação, o diretor do BNDES explicou, candidamente, que os títulos estavam "parados", e o banco não precisava deles -ou do dinheiro que eles representavam. Acrescentou, candidamente ainda, que o BNDES tem US$ 4 bilhões em títulos do Tesouro em seus cofres (carteira) e vai usá-los em operações iguais com outros grupos empresariais.
Rotina do "capitalismo brasileiro", portanto. Rotina espantosa, pois o Tesouro se endivida, emite títulos, paga juros de 40% a 50% ao ano ao mercado financeiro, aumentando o seu rombo, e um banco estatal alega "não precisar" de US$ 4 bilhões...
Classe média e povão não descobriram, ainda, que as operações de "reengenharia financeira" estão afundando o país, quebrando o Tesouro Nacional -e o estouro virá mais cedo do que se pensa. Como assim? A equipe FHC, nos últimos meses, está forçando o governo federal, o Tesouro, a emitir títulos aos borbotões, aumentando incrivelmente sua dívida (em títulos) e o pagamento de juros sobre elas.
Banespa - O acordo com o governo paulista prevê que o Tesouro Nacional vai emprestar R$ 7,5 bilhões a São Paulo. Não em dinheiro, que pareceria um escândalo (e é). O Tesouro entrega títulos no valor de R$ 7,5 bilhões ao governo paulista, que paga o Banespa, que paga o Banco Central.
Lindo. Quem fica com a conta? O Tesouro, que só vai receber a dívida do governo paulista em 30 anos e pagará juros ao mercado desde já.
Bancos - o Tesouro vai emitir uns R$ 20 bilhões em títulos para pagar, aos bancos, o saldo restante dos contratos de compra de imóveis pelo SFH (diferença que "sobra" no fim dos contratos, por causa dos reajustes insuficientes das prestações).
Em tempo: em Minas Gerais, o Ministério Público entrou com ação na Justiça, e ganhou, contra a fórmula usada pelos bancos para calcular esses saldos, lesando o Tesouro. Não se falou mais no assunto. Foi engavetado. No total, há R$ 50 bilhões em jogo...
Só com esses dois casos, a dívida em títulos do governo cresce R$ 7,5 bilhões (São Paulo), mais R$ 20 bilhões (bancos). Vale lembrar ainda: mais R$ 7 bilhões, para a "troca" das dívidas dos agricultores com os bancos; mais R$ 2 bilhões para "troca" de dívidas de estatais com o Banco do Brasil; mais R$ 2 bilhões de dívidas da ex-Sunamam (Marinha Mercante) com bancos. Total de aumento da dívida: R$ 38,5 bilhões. A juros de 40% ao ano, mais R$ 15 bilhões de rombo por ano. Um desastre.
Em qualquer país, o cidadão-contribuinte quer saber o que é feito com cada centavo do dinheiro do governo e das estatais. E os empresários, além disso, combatem tratamentos privilegiados -pois eles podem beneficiar a concorrência e levá-los à falência. No Brasil, é cada vez mais espantoso o poder das equipes econômicas. Somos um povo de "cidadãos-de-presépio".
PS.: Enquanto isso, a equipe FHC nega o reajuste de 10% ao funcionalismo, alegando que haveria, no ano todo, uma despesa "extra" de R$ 4 bilhões.

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