São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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SONHOS PLÁSTICOS

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

David Levinthal, 47, californiano transplantado para Nova York, realiza desde os anos 70 uma produção fotográfica única, tanto por sua qualidade, como por sua obstinação temática: fotografa só bonecas e bonecos. Suas obras (hoje todas peças únicas, pois Levinthal usa filme Polaroid) estão nas maiores coleções públicas dos Estados Unidos.
Em 1973, seu trabalho de tese na Yale School of Arts foi uma série fotográfica com soldadinhos alemães da Segunda Guerra Mundial -impressionante pelo efeito paradoxal de verossimilhança e ao mesmo tempo de distância.
Este paradoxo, permanente na obra de Levinthal, é ainda mais precioso quando, justamente por fotografar bonecas, ele se torna -quer queira quer não- um intérprete e crítico dos estereótipos sociais. Começou nos anos 70, com uma série de fotografias em branco e preto de Barbie se entregando para G.I. Joe. Mas duas outras séries de Levinthal nos interessam especialmente aqui.
Em "American Beauties", de 1990 (catálogo da Laurence Miller Gallery, de New York), o artista se serve de bonecas de tamanho inferior à Barbie -uma série de peças únicas produzidas nos retalhos de tempo por um famoso fabricante de brinquedos. As bonecas estão dispostas e são retratadas uma a uma sobre uma areia fina.
Embora provavelmente pintadas, elas revelam de propósito -por efeito de filtro- sua matéria plástica. Elas são estranhamente familiares. Por um lado, reconhecemos suas poses, seus gestos, isolados em uma praia sem nome, delimitada por um horizonte escuro. São os gestos, as poses dos estereótipos femininos produzidos pelo cinema dos últimos 30 anos. São as proporções que habitaram os sonhos de milhões de homens e mulheres.
Por outro lado, elas são propriamente indesejáveis. As deusas do imaginário contemporâneo estão longe de nós não por estarem misteriosamente distantes no Olimpo. Elas são distantes, paradoxalmente, por estarem nas mãos de todos -plástico levigado infinitamente reprodutível e massificável.
O problema não é tanto que nossos ícones não passem de bonecas plásticas. Pior é descobrir que essas bonecas tanto amadas, sonhadas e imitadas são, apesar de familiares, estrangeiras, ao ponto de serem de fato intragáveis, como Claudia Schiffer no outdoor da taça de champagne.
Mais recente, de 1993, é a série "Desire" (catálogo do Ansel Adams Center, de San Francisco). Aqui, as modelos são bonequinhas eróticas de fabricação japonesa, em escala 1/20.
Uma série de mulheres esticadas, expostas e amarradas. O efeito: um curioso mal-entendido. Como frequentemente no trabalho de Levinthal, o uso de uma abertura máxima da objetiva deixa as figuras em uma focalização muito parcial. A neblina que envolve os modelos pode sugerir que se almeja um engano: que as bonecas apareçam como mulheres reais.
Mas é fácil constatar que Levinthal não persegue esse engano. Quando o espectador pergunta assustado: "Mas estas são bonecas?", ele já sabe que são. Ele só se assusta com a descoberta de que essas bonecas conseguem animar suas fantasias sexuais.
Levinthal, de "American Beauties" a "Desire", fecha uma demonstração: os estereótipos que configuram nosso ideário da feminilidade são plásticos e pouco têm a ver com os nossos desejos. Mas, mesmo se deixarmos o desejo seguir seus caminhos e falar sua língua, nem assim encontraremos nossos semelhantes, nem assim estaremos lidando com parceiros de carne e osso. De qualquer forma -o que justifica toda a escolha temática da obra de Levinthal-, vai se tratar sempre de bonecas.
Idealizamos bonecas intocáveis que nem desejamos, mas -quando nos atrevemos a desejar- também lidamos com bonecas, embora menos intocáveis. Talvez a sabedoria da história fique com as crianças: brincar direitinho com Barbie, suas roupas e seu estilo elegante e comportado, para depois -quando os pais saírem- submetê-la (e nos submeter com ela) a jogos menos canônicos. Se possível, sem quebrar nada, para que -os pais voltando, talvez do mesmo tipo de exercício- Barbie e seus amigos possam sorrir recompostos.

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