São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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Fat Girl defende as gordas contra cânone

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Um dos traços mais obstinados do cânone contemporâneo de feminilidade é a magreza. A coisa oscilou um pouco desde a época de Twiggy. E os ombros largos de Ursula Andress também fazem parte do ícone social. Mesmo assim, o frágil, o miúdo e o magro continuam em alta.
E, logicamente, proliferam associações de defesa da gordura. Homens gordos lutam por direitos básicos e contra sua medicalização, fisiológica ou psicológica. Mulheres gordas lutam por muito mais: manter, defender sua desejabilidade; em última instância, a possibilidade de continuar sendo mulheres e não "gordonas".
Existe na Internet, por exemplo, um "site" chamado Fat Girl (e-mail: http://www.fatgirl.com/) para as lésbicas gordas e as mulheres que gostam delas. A luta com o cânone, a dolorida comparação com os ícones da beleza, não concerne só às mulheres heterossexuais. O cânone é indiferente à preferência sexual, pois sua pregnância social não é um efeito de misteriosas preferências masculinas, mas uma resposta social -arbitrária- à carência de uma definição possível do feminino.
Fat Girl oferece acesso a uma ampla literatura, assim como a outras páginas sobre o tema. Via Fat Girl é possível contatar Largesse - The Network for Self-esteem (a rede para a auto-estima). Fundada em 1983, a Largesse luta para que a imagem que as mulheres gordas têm de seu próprio corpo não seja fonte de um sofrimento numa inesgotável comparação com o cânone.
O Fat Underground começou em 1972, na onda de todos os movimentos de liberação, mas também na onda do twiggysmo. Mais oficial -e precedendo o Fat Underground-, a National Association Advance Fat Acceptance (Associação Nacional para Promover a Aceitação da Gordura), por sua vez, persegue um duplo objetivo: direitos para os gordos e demonstração de que a gordura é bonita.
O momento-chave para ambos foi a morte, em 1974, de "Mama" Cass Elliott, cantora dos "Mamas & Pappas". O movimento acusou o establishment médico de ter assassinado a cantora, que estava em regime e acabava, na época, de perder 40 quilos. Também foram denunciados os interesses em jogo na manutenção do cânone: a indústria do regime movimenta US$ 30 bilhões por ano.
Duas dimensões do movimento são centrais. Primeiro: a denúncia da parte de sofrimento real produzido pela imperiosa imposição do cânone. Segundo: a reivindicação de que as gordas possam ser desejadas, amadas, sexualizadas, por assim dizer, como mulheres.
Decididamente, a gordura não impede de pensar. As mulheres de Fat Girl sabem que, se a feminilidade for um cânone imaginário, nenhuma mulher pode verdadeiramente se reconhecer como mulher, todas inevitavelmente padecem de uma distância impossível de ser colmatada em relação a um impossível imaginário social.
Quem poderá ser mulher se -na falta, segundo a hipótese de Lacan, de um conjunto reconhecível das mulheres- ser mulher se torna a mesma coisa que ser adequada a um cânone?
Declara uma das páginas de Fat Girl: "Quero que as mulheres magras e médias encarem a disforia de sua imagem corporal e se dêem conta de que há um mundo de diferença entre suas experiências de mulheres que odeiam seus corpos e minha experiência de ser gorda. Todos os corpos femininos são odiados em nossa cultura, e isso não significa que todas as mulheres sejam gordas..."
Uma outra página enumera uma lista de pedidos aos aliados não-gordos. O primeiro: "Ser vista como um ser humano sexual". O último: "Não terem medo de me tocar -gordura não pega". O drama mesmo aconteceria no dia em que os cânones que regulam nossa vida social viessem a regular nossos desejos sexuais.
(CC)

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