São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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Olhar 'outsider'

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não chega a ser espantoso que um escritor com a originalidade do americano James Purdy, autor de mais de uma dezena de romances, seja desconhecido no Brasil. Nem que o lançamento de seu romance "Malcolm", de 1959, passe despercebido pela mídia. Em seu próprio país, onde nasceu em 1923, Purdy é em geral considerado um excêntrico cuja obra é deleite de uns poucos esclarecidos.
O problema de Purdy, num mercado cada vez mais direcionado pelo marketing, é justamente a originalidade. Seus livros (e "Malcolm" é um bom exemplo) são incongruentes, escapam aos reconhecimentos mais óbvios, são de difícil divulgação a uma percepção mais pasteurizada.
Há uma espécie de inadequação fundamental neles, própria aos verdadeiros escritores, uma inadequação de forma e gênero, do desenvolvimento da própria narrativa em relação ao que se espera de um romance -ou se esperava, sobretudo nos EUA dos anos 50, quando "Malcolm" foi escrito.
Purdy evita todos os clichês. Não há nada de aparente na forma de seus romances que possa classificá-lo -dentro de uma perspectiva hoje em grande parte anacrônica- como um escritor de vanguarda. Ao mesmo tempo, tudo conspira contra as expectativas de um leitor formado pelo romance tradicional. "Malcolm" começa aparentemente como uma típica narrativa americana dos anos 50, com um menino à espera do pai, sentado num banco em frente a um hotel famoso. Tudo leva a pensar numa cena de Edward Hopper (aliás, usado na capa da edição brasileira) ou de Norman Rockwell. Mas o mundo de Purdy é outro -e um de seus maiores talentos, revirar o convencional até sua mais alucinada incongruência.
Malcolm espera o pai há anos. Não sabe se ele apenas desapareceu ou morreu. Senta-se todos os dias no banco em frente ao hotel onde mora, sempre com trajes de uma elegância incompatível com sua condição de criança abandonada. Já aí, nessa inadequação ao realismo que a situação inicial aparentemente pedia, o que Purdy anuncia são os primeiros traços de uma dimensão que tenderá muito mais para o mítico e o absurdo do que para o psicológico.
O livro começa quando, pela primeira vez em anos, um senhor que caminha pelas ruas, uma mistura de dândi e astrólogo, decide dirigir a palavra a Malcolm. Decide "salvá-lo" de sua espera interminável, resgatá-lo de sua solidão, dar-lhe uma vida, transformá-lo afinal em alguma coisa. Para tanto, passa a ele endereços de pessoas que deve encontrar e com quem Malcolm procura, na maior parte das vezes com grande dificuldade, estabelecer tradicionais relações afetivas e de amizade.
Nesse sentido, "Malcolm" poderia ser lido como uma espécie de "romance de aprendizado" ou "romance de formação", só que dentro de uma progressão delirante, surrealista, no caso de se precisar de uma definição apenas aproximativa. "Malcolm" está muito mais próximo de um "Alice no País das Maravilhas" (passado nos EUA dos anos 50 e escrito pela ótica pervertida e implacável do "outsider") do que de "O Apanhador no Campo de Centeio".
Os costumes do dia-a-dia são passados sob a luz do "nonsense", criando um humor que é ao mesmo tempo um grito indignado contra a aparente conformidade a esses costumes. Um "romance de aprendizado" contra as regras da sociedade americana e a hipocrisia do "american way of life" quando este parecia ter chegado ao auge do consenso e da vanglória.
No absurdo dessas situações há toda uma insinuação do ponto de vista do marginalizado, do pária, do "outsider", determinando o desenrolar da narrativa. Muitas vezes, a referência ao imaginário gay, se não explícita, é um elemento importante na criação desse universo ambíguo, quase "camp", em que os personagens verbalizam seus desejos. Malcolm é, desde o início, objeto do desejo desses loucos varridos, homens e mulheres que se apegam a ele como a um filho. É disputado pelos adultos, como uma criança, e depois como homem, é levado daqui para lá e de lá para cá, para ao final ser abandonado, acabando como começou, só.
Nessa vida de Malcolm, o olhar do "outsider" vê não apenas os costumes, mas a organização social dos sentimentos por meio do mais completo "nonsense", como se a exterioridade dessa ótica, pela própria distância, os distorcesse até a incompreensão e delírio. É como se o olhar da narrativa não compreendesse mais o sentido das ações humanas e visse os sentimentos e relacionamentos ocorrerem ao acaso, sob um impulso ilógico. O curioso é que esse procedimento narrativo justamente não elimina os sentimentos. Ao contrário, está em busca de outros, mais verdadeiros, que não obedeçam a modelos ou excluam as excentricidades.

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