São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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O destino de um aventureiro

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nascido em Bogotá (Colômbia), em 1923, Alvaro Mutis viajou pouco depois com a família para Bruxelas, onde fez os seus primeiros estudos. Voltou aos 11 anos para o país natal e aí se tornou colaborador dos principais jornais colombianos, publicando poesias e ensaios. Em 1956, por causa da junta republicana, transferiu-se para o México, onde vive até hoje.
Em 1973, o conjunto da sua obra poética foi publicada em Barcelona, sob o título "Suma de Magroll el Gaviero". Desde 1985, dedica-se a uma obra romanesca: "Empresas e Tribulações de Magroll el Gaviero". Pelo primeiro livro desta obra, "A Neve do Almirante", recebeu em 1989, na França, o prêmio Medicis Estrangeiro e, a partir de então, ficou conhecido no mundo inteiro.
No ano passado, publicou "O Encontro de Bergen" e, tanto para ouvi-lo falar deste livro, quanto do seu percurso anterior, eu o entrevistei no Hotel des Saints-Pères, no qual os autores da editora Grasset costumam receber a imprensa.
Escritor fecundo, Alvaro Mutis, não é propriamente uma pessoa loquaz. Nem por isso ele deixa de dizer o essencial, como mostra a entrevista que segue.
*
Folha - Até mais de 60 anos, o senhor não escreveu prosa e diz mesmo que é o mais jovem romancista do mundo. Por que a prosa aconteceu tão tarde?
Alvaro Mutis - Tinha escrito um livro de novelas, há 40 anos. Também escrevi muitos poemas em prosa. Nunca tive a impressão de deixar a poesia para passar à prosa. As mesmas imagens e obsessões, presentes na minha poesia, estão no meu romance.
Folha - Sim, mas o senhor agora se voltou para o romance.
Mutis - Não, escrevi dois livros de poesia junto com o último romance.
Folha - O senhor se considera um escritor fecundo?
Mutis - Não. Para mim, escrever é tão difícil que eu penso muito antes de sentar diante da página em branco.
Folha - Magroll é um personagem que já existia na sua obra poética e continuou a existir em cada um dos seus livros de prosa. Como ele nasceu na poesia, como renasceu em cada um dos seus textos em prosa e como evoluiu ao longo da sua existência?
Mutis - O segundo poema que escrevi, quando já tinha a intenção de publicar a minha poesia, se chama "A Reza de Magroll el Gaviero". Já nesse poema existia um retrato do Gaviero. Eu era jovem na época, mas a minha poesia era bastante cética, amarga. Escrevi um livro inteiro de poemas sobre Magroll que se chama "A Resenha dos Hospitais de Ultramar". Ele está presente em quase todos os meus livros de poesia e também nos romances. Não tenho a impressão de que mudou muito de um livro para o outro, só que a presença de Magroll hoje é quase física, ele tem um passado, um presente, viveu muitas coisas nos livros de poemas e nos meus sete romances e agora está diante de mim com o peso de uma personagem viva.
Folha - O que se passa no face a face entre o sr. e Magroll?
Mutis - De tempos em tempos há uma relação de desafio. Quando quero, por exemplo, fazê-lo ir para um determinado lugar e ele protesta, me diz que seria mais lógico resolver outros problemas que ficaram pendentes no livro anterior. Há uma continuidade na vida de Magroll que ele reivindica cada dia mais.
Folha - Magroll é um eterno errante. Por que a errância é um tema central na sua obra?
Mutis - Porque eu vivi em muitos países. Deixei o meu país quando tinha dois anos. Meu pai pertencia ao corpo diplomático e nós fomos para a Bélgica, onde fiquei até os 11 anos. Com esta idade voltei para a Colômbia. Mais tarde fui para os Estados Unidos, viajei pela América Latina inteira, sem parar, durante 25 anos.
Folha - "Jamil", um conto do seu último livro, "O Encontro de Bergen", me fez pensar que Magroll erra para depois poder contar. O sr. diria que contar é tão importante quanto errar?
Mutis - Sim, contar é uma maneira de errar. Reconstruir a errância é uma forma de passar por ela novamente.
Folha - Gostaria de saber o que a errância propicia ao sr.?
Mutis - Não sei bem. Não é fácil responder. Comecei a minha vida com a errância e para mim ela é absolutamente natural.
Folha - O seu pai era embaixador, e o sr. portanto nasceu destinado a viajar.
Mutis - Sim. Venho de duas famílias de proprietários de fazendas de café e eles gostavam muito de viajar. Os pais da minha mãe possuíam um apartamento em Paris. Os pais do meu pai viveram na Espanha onde tinham muitos amigos.
Folha - Tinham uma ligação importante com a Europa, como muitos latino-americanos daquela época.
Mutis - Sim, eles preferiam a Europa aos Estados Unidos.
Folha - E hoje como é na Colômbia?
Mutis - Infelizmente preferem os Estados Unidos
Folha - Por que infelizmente?
Mutis - Porque eu acho que é uma influência que não tem nada a ver com o nosso passado. Somos mestiços, mistura de europeu e índio e nada temos a ver com os anglo-saxões protestantes, com toda a ideologia dos "quakers".
Folha - Em seu último livro, "O Encontro de Bergen", pouco antes de se separar do menino Jamil, que tem de ir embora para o Líbano com a mãe, Magroll afirma que nada o levaria a repetir as suas aventuras anteriores -subir o rio com um capitão alcoólatra, enterrar-se vivo à procura de ouro nas minhas abandonadas da cordilheira etc.- depois da revelação que foi a vida com o menino, vida que teria tido sobre ele um verdadeiro efeito salvador. Isso faz pensar que a errância pode ser uma condenação.
Mutis - Acho que pode mesmo. Durante muitos anos procurei motivos para que Magroll permanecesse no mesmo lugar. Ao escrever "O Encontro de Bergen" achava que a afeição pelo menino ia mostrar a ele outra face da vida.
Folha - Mostrou?
Mutis - Isso eu vou responder no meu próximo livro.
Folha - Magroll é um navegador que sai sempre vivo das suas aventuras e depois volta para contar a história. Que relação existe entre Magroll e Simbad, o Marujo? E entre a sua obra e "As Mil e Uma Noites"?
Mutis - Simbad foi, durante toda a minha juventude, um dos meus personagens preferidos. "As Mil e Uma Noites" é um livro perfeito. Cada vez que vou contar uma história, me recolho e penso no ritmo das histórias do livro. Xerazade é genial, ela é a grande contadora e foi uma grande idéia ter escolhido uma mulher para contar, porque só as mulheres conhecem o verdadeiro fim das histórias. Os homens são mais superficiais. São as mulheres que sabem as consequências de cada passo na vida.
Folha - Sua obra também é uma reflexão sobre a morte. No seu romance anterior, "Abdul Bashur", o sr. diz que cada um "cultiva, escolhe, irriga, esculpe, modela a sua própria morte". O que isso significa?
Mutis - Cada ser humano, pelo seu destino e caráter, constrói uma determinada morte. Basta considerar o que você pode realizar e o que não pode para saber o que vai lamentar no fim da vida. Ou basta ainda pensar nas pessoas que você escolheu durante a sua vida e nas que afastou para saber quem vai chorar a tua morte e quem não vai. Escrevi uma história de um militar que morre muito feliz porque morre nos braços da mulher amada.
Folha - Bonito isso. O sr. gostaria de acrescentar algo ao que já me disse?
Mutis - Sim. Quando comecei a escrever, imaginava que Magroll estava e ficaria sob o meu controle e, hoje, eu às vezes me pego pensando nele, me perguntando o que pensaria disto ou daquilo. Por exemplo, quando ganhei o prêmio Caillois, em Reims, eu me disse que se o Magroll soubesse ele me daria um pito porque não acredita que se deva premiar o que quer que seja. O prêmio, do ponto de vista dele, está na criação e na experiência.

ONDE ENCOMENDAR
"Le Rendez-Vous de Bergen", Paris, Ed. Grasset, pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, tel. 011/231-4555, São Paulo)

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