São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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CLAUDIA SCHIFFER NÃO EXISTE

Músculos femininos desafiam cânone ocidental

CONTARDO CALLIGARIS; ELIANA CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Na Times Square, em Nova York, reina nestes dias um enorme outdoor. Nele, Claudia Schiffer está deitada em uma taça de champagne: "Feliz 1996!".
Quando Claudia Schiffer passa por esta sinaleira e contempla o outdoor, será que se reconhece?
Veio em nossa ajuda uma recente entrevista de Cindy Crawford na revista "Cosmopolitan" deste mês. O artigo promete explicar por que Cindy não tem tudo e não é tão perfeita assim. Ela mesma explica: "Meu grande mentor, Radu, me disse: 'Você passou os últimos dez anos sendo Cindy Crawford e ganhou a medalha... Agora, quero que você trabalhe para tentar ser Cindy, a mulher'. Preparar-se para ser mãe e esposa, ter uma vida".
A coisa vai mais fundo do que uma simples observação sobre o estafante trabalho de um ícone social. Ela aponta para o fato de que nem a própria Cindy Crawford pode sentir-se adequada ao ícone Cindy Crawford. Nem o molde se reconhece na estátua.
Portanto, Claudia Schiffer (a moça) na sinaleira de Times Square provavelmente olharia para Claudia Schiffer (o ícone) e se acharia inadequada: descobriria rolinhos de banha inesperados, rugas incipientes, fios de cabelos com pontas duplas. Mais importante: talvez, como Cindy Crawford, ela descobrisse que o próprio ícone que sua imagem passou a ser não lhe ajuda a ser mulher.
"A mulher não existe": esta frase de Lacan foi e ainda é objeto de risos e sorrisos. Nada demais, pois certamente foi feita para isso. Na verdade, à parte sua deliberada provocação, tinha um sentido claro. Lacan queria afirmar que as mulheres não formam um conjunto. Não dá para falar das mulheres -ou melhor, da Mulher- como se fossem todas membros de um mesmo conjunto. As mulheres, acrescentava com a mesma ironia, é preciso tomá-las uma a uma.
Curioso que logo esta frase tenha sido tão chacoteada. Os irônicos poderiam, com mais proveito, ter perguntado: e os homens, será que formam um conjunto?
Lacan pensava que sim. Ele tinha suas razões, pois achava que todos os homens, por diferentes que sejam, têm algo fundamental em comum: eles são crentes. Não que acreditem necessariamente em um Deus, mas todos pareceriam bem dispostos a considerar que existe algum outro superior ao qual podem e devem se medir.
Por exemplo: eles se cansam e dormem mais ou menos regularmente, mas adoram pensar que ao menos um -pai para todos- fica heroicamente acordado, cuidando dos outros. Mussolini, que devia conhecer esses elementos de psicologia masculina, deixava sempre acesa a luz de seu escritório no Palácio Veneza, em Roma.
Portanto, Lacan concluía, os homens formam um conjunto. Ao contrário, ele achava que as mulheres sempre sabem que o tal outro superior é um tigre de papel, um papo furado. Sabem, em suma, que a luz pode estar acesa, mas que, como qualquer um, também o pai da pátria dorme e talvez até ronque. Consequência: as mulheres não constituem conjunto nenhum, pois só teriam em comum uma espécie de pergunta ou de dúvida sobre qualquer outro que tente convencê-las de sua insônia e assim colocá-las todas (como conjunto) para dormir tranquilas.
Lacan, como Freud, falava um pouco como se estivesse descrevendo a essência humana, masculina ou feminina. E não está nada certo que tais essências existam. É mais provável que ser homem e ser mulher mude bastante com os tempos e os climas (sociais, evidentemente). Mas, no que concerne aos nossos tempos, estas suas idéias resistem à prova dos fatos.
No mínimo, deve-se constatar que, embora haja -sobretudo hoje- uma indefinida variedade de homens, globalmente esta diversidade não impede que sejam todos reconhecidos como homens, inclusive por eles mesmos.
Laurie Fierstein (leia entrevista à pág. 5-5) observa o mesmo: um homem, mesmo travestido de mulher, ainda pode ser e se sentir no grupo dos homens, uma mulher musculosa já é mais problemático. Por outro lado, a extrema relevância que tem na modernidade um cânone de feminilidade é uma espécie de prova indireta da idéia de Lacan. Um cânone da feminilidade parece ser proposto e se impor às mulheres para que façam de conta que são um grupo e um conjunto, como se, sem isso, elas não tivessem como ser reconhecidas e se reconhecer como mulheres.
Em outras palavras: parece que, para se sentir mulher, na falta de um papai 24 horas, é proposto o recurso a modelos, estereótipos sociais. Querem ser mulheres? Pareçam-se com Claudia Schiffer ou Cindy Crawford. Mas Claudia Schiffer e Cindy Crawford (os ícones) não existem. Só existem Claudia e Cindy, as moças.
Também há cânones para os homens, mas certamente menos rigorosos. Eles podem se chatear com sua distância do Marlboro Man, mas essa não parece fazer diferença quando devem hastear a bandeira e gritar: "Sou um homem!"
Em suma, a sociedade parece compensar a inexistência do conjunto das mulheres com um cânome da feminilidade. Naturalmente, o cânone não é imutável, não revela nenhuma essência. Cada época tem seu ícone e talvez mais de um. Mas o que importa é que as mulheres -como o movimento feminista já notou- parecem passar por um treinamento para virem a ser mulheres. A feminilidade, mais do que a masculinidade, é denunciada -com alguma razão- como aprendizagem forçada de conformidade a ícones sociais.
Neste contexto, só sobrariam duas possibilidades para uma mulher. A primeira: perseguir um cânone qualquer, dobrar-se a suas exigências e inevitavelmente atormentar-se na tentativa de atingi-lo. O cânone perseguido torna-se perseguidor por ser impossível: ninguém é Cindy Crawford, nem ela mesma. A segunda: protestar e assumir a distância dos padrões estabelecidos como um valor positivo. Aqui pareceriam se situar as mulheres gordas e as musculosas das quais se trata nestas páginas.
Com o evento "Evolution-F", ocorreu algo mais que um simples protesto das musculosas querendo ser canonizadas. A proposta era de que a força e os músculos se tornassem traços de uma possível feminilidade, como o cabelo em cachos, os saltos altos e a minissaia.
Na luz da cena, os corpos das performers nos seduziram a todos, homens e mulheres: impossível não admitir que a musculatura -percebida inicialmente como um ultraje aos estereótipos do corpo feminino- tornava-se adorno possível do mesmo.
Era o ovo de Colombo: qualquer homem na platéia descobria que seu desejo não era escravo do outdoor de Times Square. E qualquer mulher descobria que, para ser desejada, não precisava pagar tributo ao mesmo outdoor.
Nenhuma ilusão: os estereótipos continuarão se impondo e reinando para tentar fazer das mulheres um grupo ou grupos. Mas abre-se uma fresta: os estereótipos podem regrar nossos estilos de vida e até nossas enfatuações amorosas, mas o desejo segue outros caminhos.
Talvez esses elementos nos recordem que não é necessário para uma mulher deitar-se em uma taça (inexistente) de champagne para ser desejada e que não é vergonha para os homens não desejar Claudia Schiffer.
(Contardo e Eliana Calligaris)

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