São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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A POTÊNCIA FEMININA

CONTARDO CALLIGARIS; ELIANA CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Laurie Fierstein, 47, 1,50m e quase 80 quilos de músculos é mais do que uma das mulheres mais fortes do mundo.
Em 1993, organizou com 22 outras mulheres "body builders", no Roseland Dance Hall, em Nova York, uma performance muito comentada pela imprensa: "O mais impressionante músculo feminino do mundo". O propósito era o mesmo de hoje: celebrar a força feminina fora do circuito tradicional do "body building" e, sobretudo, afirmar a possível feminilidade dos músculos.
Laurie repetiu a dose, em novembro de 95, com "Evolution-F", uma performance de duas horas no Manhattan Center. Passou meses escrevendo um script denso de alusões mitológicas e históricas sobre a história e a evolução femininas, meses mobilizando mais de 300 pessoas entre mulheres "body builders", coreógrafo etc. para um evento, enfim, surpreendente e bonito.
Encontramos Laurie, que adoraria levar sua performance ao Brasil, poucos dias após o evento: um olhar malicioso e inteligente, a voz doce, movimentos delicados das mãos, mas a postura dos braços e do corpo curiosamente contida pela massa muscular.
(Contardo e Eliana Calligaris)
*
Folha - Qual é seu primeiro balanço da performance?
Laurie Fierstein - Ela permitiu que mulheres "body builders" trabalhassem juntas e não numa competição. Numa manifestação em que ganham todas, não só por se mostrarem em sua beleza, mas também por dizerem juntas algo importante, acredito, sobre a mulher, sobre a diversidade das mulheres.
E as primeiras reações foram positivas. Salvo por um pequeno segmento do público: os aficionados do "body building" feminino. É um público masculino pequeno -bem menor é o de homens que realmente gostam de mulheres musculosas. Os homens ou acham os músculos femininos repugnantes ou são atraídos sexualmente por eles. Mas, nesse caso, vivem seu interesse vergonhosamente.
Folha - Por que o fato de sentir atração por mulheres musculosas seria mais problemático do que se sentir atraído por mulheres magras, por exemplo?
Fierstein - Os músculos são considerados como atributos masculinos. Aliás, é por isso que o "body building" masculino é mais aceito socialmente. Assim, se um homem revela que se sente atraído sexualmente por mulheres musculosas, ele é estigmatizado. É uma besteira, claro, pois estes homens são atraídos por mulheres musculosas e não por homens.
Eles compram revistas, vídeos, mas poucos ousam ir a um show, porque seria mostrar suas preferências. Esses poucos são homens que gostam de mulheres musculosas e ousam se mostrar. Eles não gostaram muito do evento. Teriam preferido uma competição convencional: só exibição de músculos.
Folha - Para este público, as mulheres musculosas são uma preferência sexual, então.
Fierstein - Uma preferência sexual muito definida e exclusiva, que se torna tanto mais importante porque é vivida como algo proibido. Gostaria de entender melhor esta atração. As mulheres "body builders" têm uma expressão para denegrir os homens que gostam delas, mas não são musculosos. Os chamam "schmoes".
Folha - Elas se relacionam com "schmoes"?
Fierstein - A não ser por necessidade ou interesse.
Folha - Nunca se apaixonam por um "schmoe"?
Fierstein - Toda a questão do gênero é muito complicada para nós. Uma "body builder", relacionando-se com um homem que não seja forte fisicamente e mesmo mais forte do que ela, sentiria sua feminilidade ameaçada. Do mesmo jeito, um homem pode se sentir ameaçado por uma parceira que seja mais poderosa do que ele.
Folha - A vida amorosa se torna um problema.
Fierstein - Tanto assim que a maioria das "body builders", quando não são lésbicas, são muito solitárias. Para elas, o treino -também solitário- se torna a coisa mais importante.
Folha - Mas ninguém acaba escolhendo um caminho tão duro quanto o "body building" sem uma fantasia.
Fierstein - Existe um prazer quase sexual no exercício da força.
Folha - O interesse erótico dos "schmoes" é dominado por algum tipo de fantasia de dominação, sado-masoquista?
Fierstein - Eventualmente, mas em ambas as direções. Um homem que não seja poderoso pode derivar uma grande sensação de poder, dominando uma mulher musculosa. De qualquer jeito, é impossível generalizar. Há mil variantes.
Não gosto da palavra "schmoe", não quero denegrir ninguém. Não há nada de errado no fato de se gostar de mulheres musculosas. Criticar os homens que gostam de mulheres musculosas é acreditar no estereótipo do homem forte e da mulher frágil, contra o qual lutamos.
Folha - "Evolution-F" é uma performance contra o estereótipo enquanto tal. A própria força feminina, aliás, não apareceu só com as mulheres musculosas, mas também com uma soprano, com experts em artes marciais, acrobatas. Eram variações sobre a diversidade do corpo e da beleza femininos. Beleza nem sempre ligada à potência, porque no fim da performance havia a reconciliação da mulher poderosa até com Barbie, como símbolo do estereótipo dominante.
Fierstein - As mulheres "body builders" não são tão afastadas dos estereótipos femininos comuns. Há um grande esforço feito por elas, uma espécie de hiperfeminização, para compensar seus músculos. Isso concerne ao comportamento, à roupa, como se tivessem que demonstrar que ainda são mulheres. Com todos estes músculos, como você vai provar que ainda é uma mulher? Você recorre ao cânone, adorna seus músculos com brinquedos da Barbie.
Folha - Por isso o evento termina com um show de moda.
Fierstein - O desfile queria ser o clímax do reencontro entre Barbie e a mulher forte, que no evento era Joana d'Arc. Era importante para mim que essas mulheres poderosas pudessem desfilar com roupas femininas. Isso é um efeito da pressão social do cânone, como se as mulheres tivessem que negar seu jeito de ser para serem aceitas. E o "body building" feminino ainda não é aceito, embora já exista há tempos.
Hoje há uma aceitação muito grande de uma pluralidade de figuras masculinas. Até as drag queens são aceitas como uma figura possível da masculinidade. Mas uma mulher musculosa ainda não é.
Para organizar o evento, fomos visitar um número de famosos designers de moda feminina, para que fornecessem suas roupas para o desfile. Eles nos disseram literalmente que suas imagens seriam manchadas, se permitissem que suas roupas desfilassem com mulheres musculosas como modelos.
É tanto mais engraçado que estes mesmos designers já usem em seus desfiles homens drag queens. Por alguma razão, parece mais aceitável um homem se fazer de mulher do que uma mulher assumir os adornos da masculinidade. Isto é vivido como uma invasão.
Folha - De fato, o "body building" não é o mesmo que o travestismo. Vocês não se vestem de homens, vocês modificam seu corpo, sem por isso serem transexuais. Seus corpos não são fruto de uma operação cirúrgica. Vocês conquistam os atributos da força e não são atributos só aparentes, próteses de silicone. Os músculos são reais, obtidos por um esforço enorme.
Fierstein - Para ter músculos, é preciso ter idéias. Eu tinha idéias antes de ter músculos. Mas as idéias são complicadas. Por exemplo, descobri que parte da aversão, do preconceito, contra os músculos femininos vem de fato de setores do movimento feminista. Acham que, assumindo, produzindo estas características, deixamos a feminilidade e vamos para uma identificação com a masculinidade. Minha resposta a isso é a seguinte: as pessoas não são de uma, nem de duas maneiras. A diversidade é tão plural quanto há pessoas na face da Terra.
Folha - A reação mais comum dos homens e mesmo das mulheres vendo mulheres "body builders" é: "Meu Deus, não gostaria de me parecer com isso". Ou então: "Isso é demais!".
Fierstein - Sei. Mas o que é demais? O demais de cada um é diferente. Esta já foi uma polêmica com o mundo inteiro do "body building", onde se pensou durante muito tempo que as mulheres "body builders" deviam ter músculos, mas não demais!
O que isso quer dizer? Em nossa sociedade, por mais que o corpo esteja presente, na verdade prefere-se lidar com questões de espírito, não de corpo. O corpo como tal, aliás, é também outro problema para o movimento feminista. Elas consideram que qualquer coisa que tenha a ver com o corpo e as mulheres é automaticamente sujeito à exploração.
Folha - Mas isso deveria ser verdade também, por exemplo, para a mulher anoréxica que está mais perto do cânone. Salvo que ela, de uma certa forma, anula seu corpo.
Fierstein - Certo. Um fenômeno interessante, e que não sei explicar, é que a porcentagem de mulheres "body builders" que estão com homens negros é muito mais alta do que a média. Geralmente, os homens negros gostam dos músculos. E muitas mulheres "body builders" gostam de homens negros, precisamente porque eles parecem reconhecê-las e gostarem delas do jeito que elas querem ser gostadas.
Folha - Dá para imaginar algumas explicações: por um lado, a própria escravatura forçou os homens negros a afirmar sua masculinidade pelo corpo. Eles podem, assim, ser e se sentir fisicamente poderosos, sem por isso ser "body builders". Portanto, podem aparecer como poderosos aos olhos das mulheres fortes. Também, uma mulher "body builder", por sua própria força -não só física-, por sua capacidade de desafiar o cânone, talvez ache menos difícil realizar uma fantasia transracial, que de fato é comum, mas que pouquíssimas mulheres têm coragem de realizar.
Fierstein - Resta saber por que os homens negros são atraídos por mulheres musculosas. Já pensei em várias razões. Por exemplo, a mulher negra é sempre poderosa por causa da frequente destruição da família nuclear. Ela nunca foi a anoréxica, sempre foi poderosa, mesmo enquanto escrava.

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