São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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MIL E UMA BARBIES

CONTARDO CALIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A cada segundo, no mundo, são vendidas duas Barbies. A menina americana média possui sete. Desde 1959, foram vendidas mais de 1 bilhão de roupas para Barbie.
É suficiente para que Barbie seja com frequência considerada como um perigoso protótipo dos falsos ídolos que a sociedade de massa propõe às mulheres. Particularmente perniciosa por subornar menores, contribuindo bem cedo na construção dos estereótipos do gênero feminino. Na época da Barbie falante, existiu até um Movimento de Liberação da Barbie, que fez ousada sabotagem, invertendo as gravações de Barbie e G.L. Joe, mandando a primeira sugerir: "Come chumbo, Cobra", e o segundo: "Vamos às compras!".
Mas qual foi o sonho que, dos anos 60 em diante, as mães foram transmitindo para suas filhas, oferecendo-lhes a boneca? Certo, Barbie gosta de shopping, cuida demais de suas aparências, é anorexicamente fina de cintura etc. Em suma, ela pode parecer um simulacro do que há de mais vazio e narcísico na modernidade tardia.
No entanto, se Barbie teve uma roupa de casamento, não casou. Embora ainda eterna adolescente, já trabalha e, se foi hostess, agora já pode ser piloto de linha e astronauta. Barbie, em suma, é um estilo tão complexo quanto o ideal feminino do pós-guerra, para o estudo do qual, aliás, poderia servir de guia: submissa aos ideais do consumo e aos estereótipos narcísicos, mas por isso mesmo independente, está livre da autoridade parental (Barbie nunca teve bonecos-pais), é autônoma e bem-sucedida.
1994 deveria ser o ano Barbie, por ser o seu aniversário de 35 anos. Mas 1995 pareceu contar mais para ela. Saíram os livros de Erica Rand, "Barbie's Queer Accessories", e (em paperback) o de M.G. Lord, "Forever Barbie", um dos ensaios de crítica cultural mais brilhantes que li nos últimos anos. E uma exposição (catálogo "Art, Design and Barbie"), organizada na Alemanha, chegou no mês passado a Nova York, onde ficará no Financial Center (Torres Gêmeas) até fim de fevereiro.
A exposição é divida em três partes. A primeira e mais fraca é "As Antepassadas de Barbie", uma pouco significativa amostra de bonecas do passado. Pena, pois o tema podia introduzir reflexões interessantes. Barbie é simbolicamente a primeira boneca adulta da modernidade. As bonecas oferecidas às crianças até o começo do século 19 também eram adultas. Antes da invenção da infância, valorizada como tempo separado da vida adulta, as crianças eram só rebentos que, esperava-se, crescessem logo: por que lhes fornecer então bonecas-bebês?
Uma cultura que não dava valor à infância como momento específico da vida não podia achar graça e uso em bonecas-bebês. Foi necessário que, com a modernidade, a infância se tornasse um valor em si, para que se propusessem bonecas-crianças para a criança brincar e, brincando, se espelhar feliz.
As coisas aparentemente mudaram no último pós-guerra, com a volta (mas com um valor bem diferente) de bonecas adultas. Primeira e rainha: Barbie. Aliás, a antepassada imediata de Barbie (presente na exposição) é uma boneca alemã, Lilli. O que a exposição não lembra é que Lilli -embora parecidíssima com Barbie- era vendida em tabacarias e se destinava a um público masculino e adulto. Era uma espécie -como se expressa M.G. Lord- de "pin up" tridimensional e safadinha. Mas, por mais que Barbie tenha imitado Lilli, sua grande novidade foi destinar-se às crianças. Barbie se torna assim o símbolo de uma considerável mudança na concepção moderna da infância.
Progressivamente, as crianças do pós-guerra ocidental não são mais convidadas apenas a fazer felizes os adultos, oferecendo-lhes a imagem da infância que não tiveram. Elas, hoje, ainda crianças, parecem ter que realizar -ou no mínimo caricaturar- as imagens da felicidade que os adultos gostariam para si.
Barbie, instrumento cultural desta mudança, se torna também a testemunha cultural dos sonhos de felicidade dos adultos. É esta a segunda parte da exposição, "A História de Barbie", uma ampla seleção das Barbies produzidas desde 1959. Desfilam, com as diferentes Barbies e seus acessórios, os sonhos da América e do mundo ocidental, desde os anos 60 até hoje. Sonhos também politicamente corretos: Barbie negra, Barbie latina, Barbie brasileira.
Mas o que pode acontecer com as crianças brincando com Barbie? Elas podem, é certo, decidir pelo caminho da imitação. Os exemplos extremos não faltam. A americana Cindy Jackson, fundadora do Cosmetic Surgery Network (Rede de Cirurgia Plástica, baseada em Londres), já passou por mais de 20 operações e gastou US$ 55 mil para se parecer com Barbie.
Parecer com Barbie -sobretudo fisicamente- é um problema. As proporções da boneca são impossíveis para uma mulher de nossa espécie. Sua cintura teve que ser muito mais fina do que o normal, uma vez que saias e calças acrescentam uma espessura fora de proporção com o tamanho da boneca. Há aqui uma lição: Barbie, como ícone social, é um cabide que ninguém pode vir a ser.
As crianças podem também brincar de maneiras raramente previstas por pais e fabricante. Neste sentido pode-se ler a terceira parte da exposição, "A Arte de Barbie", uma seleção de obras de arte sobre ou com Barbie, desde o famoso retrato da boneca por Andy Warhol, encomendado pela própria Ruth Handler. A escolha é naturalmente prejudicada, por ser pilotada pela companhia Mattel. De fato, em 1994, Barbie tinha sido festejada por uma outra exposição em Nova York -esta não organizada nem subvencionada pela Mattel: "Salon de Barbie".
A exposição era no The Kitchen -conhecido por expor obras controversas- e apresentava uma série de obras que envolvia a boneca em atividades, poses e situações pouco compatíveis, aparentemente, com seu destino lúdico e icônico normal. David Levinthal expunha, por exemplo, uma série de fotografias de Barbie nas mãos (e pior) de G.I. Joe. Há uma vasta produção artística que transforma e coloca Barbie em situações menos que ideais. Para quem quer mais, pode-se consultar, na Internet, a página "Barbie Bashing", de Carol McCullough, cuja "Barbie Crucificada" foi censurada em 1993 em uma exposição.
O que alguns artistas puderam provocadoramente fazer com Barbie, parece que as crianças fazem a cada dia. Para escrever seu livro, Erica Rand inspirou-se numa imagem que encontrou em 89 em uma revista lésbica, "On Our Backs": uma mulher inserindo Barbie na vagina. Ela entrevistou crianças e adultos que brincam ou brincaram com Barbie para tecer um quadro dos usos e abusos da boneca. Descobre-se assim que não há estereótipo social que resista ao desejo. Os cânones imaginários nos maltratam. E há quem sofra bastante com sua diferença de Barbie. Mas também os cânones se deixam maltratar, deturpar, ultrajar.
Barbie, herdeira de Lilli, justamente por ser a imagem de um sonho adulto, carrega e injeta no mundo da infância uma faísca de desejo sexual. É suficiente para que o cânone mostre sua fraqueza: se os colecionadores procuram Barbies intactas, e Cindy Jackson procura se parecer com ela, de fato a maioria das meninas parece aprender com Barbie que o maior prazer consiste em despedaçá-la e submetê-la, junto com Ken e outros, a inomináveis torpezas. Por que a companhia Mattel se queixaria? O consumo de Barbie cresce.
(Contardo Calligaris)

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