São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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Espetáculo de mulheres fortes rompe com ilusão da totalidade

MARSHALL BLONSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como todo mundo, tenho meus "tipos", corpos que me fazem vibrar e que certamente correspondem mais às minhas fantasias do que a atributos facilmente enumeráveis. Minha fantasia, mantida discretamente aqui, não é de forma alguma a mulher esculpida, a "body builder".
Assim, foi com certo espanto que vi, numa certa noite de sábado, em Nova York, uma performance chamada "Evolution-F": "F" de feminino, de feminismo, de fantasia, "F" de "qualquer coisa que se queira", diz a artista conceitual, "body builder", Laurie Fierstein, escritora, produtora, condutora de uma performance para os não tão "happy few".
Há um modelo em Nova York para isso: o teatro de idéias dos anos 60, em que, numa cobertura em Manhattan, para uma audiência formada pelos jovens Norman Mailer, Arthur Miller e outros, um desses talentos leria um trabalho que estivesse escrevendo ou apresentaria artistas atuando em tal trabalho: formadores de opinião fazendo a cabeça de outros formadores de opinião.
E, agora, ocorreu aqui, no distrito de Penn Station, como se fosse há 30 anos: rostos iluminados, cabeças erguidas. Um novo tipo físico substituindo dentro de si, ou parecendo substituir, o anterior. Melhor: tipos físicos, ou somente físicos, pois, em nossa frente, estava o musculoso, o grande, mas, acima de tudo, o "hapático".
O hápax é um significante que ocorre somente uma vez no corpo gravado de uma linguagem. Cada performance é um hápax. É o que faz a diferença de um show: não há repetição, acontece somente uma vez. Mas esta apresentação também foi um hápax em outro sentido. Fierstein conseguiu juntar 35 "body builders" do país inteiro e do exterior, mulheres que, sob orientação coreográfica de Hope Clark haviam em uma semana se tornado dançarinas.
Ali estava Amelia Altimare, nascida Milanese, agora uma exótica dançarina em Nova York. Ela interpreta Afrodite (há uma linha de enredo: a recriação do mundo, desta vez com os homens em papéis secundários). Ela olha para seu designer com olhos de uma tristeza intensa, quase a ponto de chorar, belas maçãs da face salientes e braços semelhantes a cobras recém-alimentadas, musculosos e completamente tatuados. Castamente, Altimori esconde seus seios pequenos, enquanto o designer Renato Cavero faz ajustes.
Em outro camarim, Carla Nelson levanta seu braço para permitir que C.J., Cindy James, se abaixe para apertar sua calça. Com os músculos do braço retesados, Nelson parece prestes a decapitar C.J., ela mesma uma mulher "muscular". Uma das pernas da calça é longa, a outra curta. A coxa nua é tão protuberante, com a musculatura tensa, que dá impressão de ter arrebentado metade da calça.
No palco, Betsey Erikson, loira de olhos azuis, acaba de pular sobre uma barra, suspensa no ar, as pernas abertas como tesouras, estiradas, a ponto de se separarem. Fierstein queria construir um mito, a mulher musculosa, tal qual um monstro apaixonado por sua monstruosidade. Saibam todos: o matriarcado poderoso está chegando neste mundo sem homens.
Fierstein desejava produzir mito, o que quer dizer: signos. O que ela fez de mais precioso, em vez disso, foram corpos que pulsam. Esqueça o script, a coreografia de Clark colocou os corpos em constante movimento, nunca permitindo que parassem em um lugar, fazendo-os divergir perpetuamente e impedir que o discurso do mito de Fierstein decolasse, encorpasse, entrando na cultura comunicativa.
Ela fez essas mulheres moldarem seus corpos como figuras -termo que tiro de um ensaio de Roland Barthes de 1975, "Rasch".
Nossos corpos, escreveu Barthes, formam figuras análogas a figuras acrobáticas. Quando estou eufórico, por exemplo, qual é o meu tamanho? Não vai de meu queixo ao topo de minha cabeça, com certeza. Tenho, isso sim, a altura de alguém erguido nas pontas dos pés com os braços levantados, o que nos permite entender melhor o gesto triunfante do atleta, braços acima da cabeça, atingindo o limite da dimensão humana. Ser um corpo? É viver sem fôlego, com pressa, desejo, ansiedade, leveza, peso, orgasmos etc.
A "Pessoa", o clichê da nossa época, aquele clamor de unicidade, de um tecido único, deixa-se levar pela ginástica, um corpo pulsante substituindo sua ficção.
A mulher não existe: não há o universal, não há um tipo enlouquecedor único. Também aqui, hoje à noite, a mulher não existe. Nenhuma mentira da "Pessoa": atrizes amadoras, "quase" dançarinas, elas estruturalmente não podem alcançar a nossa arte teatral, cuja fundação, disse Barthes, deve-se menos à ilusão de realidade que à ilusão de totalidade.
Gestos, palavras, faces, corpos não têm o treinamento, nessa noite, para atuar, cantar, mimicar um tecido único, unido e lubrificado, como se a forma da vida fosse um simples músculo colocando em cena expressões e palavras, mas nunca dividindo isso, uma unidade de movimento e voz produzindo aquele que atua.
Assim é feito o corpo. O corpo que pulsa em muitas, muitas figuras. Eu poderia amar todos aqueles corpos.

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