São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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MARIO VITOR SANTOS

O silvo da desobediência empolga a praia carioca
É o verão do apito na praia de Ipanema. A qualquer indício de aproximação policial, "neguim" não vacila, apita para alertar os consumidores de maconha. Autodenominados anarquistas, fazem isso como forma de resistir e de lutar pela descriminação do uso da erva.
Tem tudo a ver com o espírito da praia, em particular com a tão adiada temporada de praia carioca deste verão. "Vagabundo" se diverte assistindo de camarote a desmoralização pacífica da polícia.
A palco é ideal: ali, nas areias, sol a pino, água abundante -que já trouxe a maconha da lata, lembra-se?-, corpos à mostra, território liberado sem gravata e autoridade, com Fernanda Abreu e Planet Hemp ao fundo.
Os que apitam são Ghandis, na definição do deputado petista Carlos Minc, ou seja, ativistas não-belicistas a enfrentar a truculência das armas com o gesto inocente de um sopro. Assim, a boca que inspira cannabis exala o silvo da desobediência civil.
Os mais conscientizados alegam que o movimento tem fundo político. Faz parte da campanha para pressionar o Congresso a aprovar a proposta que elimina a possibilidade de cadeia para o usuário de drogas.
O verão do apito estende às praias a atitude de coerção e tolerância que o tráfico conseguiu obter dos moradores das favelas, onde, nem sempre em troca de dinheiro, olheiros alertam os traficantes quando a polícia se aproxima.
Traficantes sinalizam com fogos quando droga nova acaba de chegar à boca. Na praia, apitamos hoje em aliança tácita e tática com os traficantes. Amanhã, revoltados, com larica de paz e segurança, engrossamos a passeata contra a violência, as armas e os sequestros.
Depois, se a situação ética se deteriora, culpamos as autoridades, a crise econômica, esse povinho brasileiro, ignorante, individualista, incapaz de criar regras consensuais mínimas que permitam o desenvolvimento pacífico. Para esse quadro de atraso e desespero social, quem mais contribui é o Congresso Nacional, moroso e omisso.
Na praia da legislação, estamos atrasados no reconhecimento de uma situação de fato: há muito as drogas penetraram fundo nos costumes da sociedade brasileira, em todas as classes sociais e níveis de escolaridade.
Se a lei não leva em conta este fato, ela se desmoraliza e permite a expressão do traço essencial da alma verde-amarela: a recusa, pela preguiça ou pela ação, de qualquer forma de organização social, especialmente se ela for democrática, se depender de controles mais baseados na adesão e coerência entre ação e convicção individual do que na simples repressão imposta pelos que se revelam mais aptos. Silvo por silvo...

Ilustração: Claes Thure Oldemburg, cone de chão, 1962

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