São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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essa mulher é uma parada

MARISA ADÁN GIL
FOTO ROCHELLE COSTI

Ela não dorme há seis dias. "Estou morrendo de medo", diz, em confissões telefônicas às três da manhã. Está tudo armado: cantor, repertório, palco, som, segurança, ambulâncias. O que pode dar errado? "Minha carreira pode acabar."
No dia 9 de dezembro, a carreira da produtora de eventos Ana Maria Mendes Aydar chega ao auge. Às 19h45, Caetano Veloso sobe ao palco montado na esquina das avenidas Ipiranga e São João e protagoniza um dos maiores shows da história.
Lá, canta por duas horas para 100 mil pessoas. Lá, agradece à esquina a inspiração para seus versos. Às 6h do domingo, "Bia" -como é conhecida- vai para casa. E dorme.
"Era uma responsabilidade tão grande!", diz, lembrando o sufoco daqueles dias. "E se não conseguíssemos montar o palco a tempo? E se tivesse quebra-quebra? Podia morrer alguém, não podia?"
As primeiras reuniões com prefeitura e CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) foram desastrosas. Bia a a irmã, Fernanda Nigro (sua sócia na empresa de eventos Face), ouviram um sonoro "NÃO".
"Não queríamos paralisar uma das áreas mais movimentadas da cidade", diz Sanderley Fiúza, presidente do Procentro (Programa de Valorização do Centro da Prefeitura de São Paulo). Por movimento, entenda-se 600 ônibus (115 linhas diferentes), 2.400 veículos e 300 mil pedrestes circulando por hora.
Havia também o risco de depredações. "Os proprietários da área poderiam processar a prefeitura", diz.
Jogando no seguro
Para que o show acontecesse, o Procentro impôs duas condições: que o trânsito fosse impedido apenas à 0h de sexta (e liberado até domingo à noite) e que a empresa fizesse um seguro para possíveis danos ao patrimônio público e privado. As duas foram cumpridas. "Achei que iam dar três dias. Bom, enlouqueci. Agora só faltava chover."
Na véspera do show, 30 produtores e 130 operários tentavam, sob a chuva torrencial de São Paulo, montar palco (36 m de frente, 15 m de profundidade d 15 m de altura), instalar som (potência de 70.000 watts) e iluminação (150 kwas). "Tinha gente escorregando, tivemos que interromper várias vezes", conta Bia. "Ninguém dormiu naquela noite."
A paz invadiu o centrão. Os 590 encarregados da segurança (350 homens da PM, 40 membros da brigada de incêndio e 200 seguranças contratados) não tiveram trabalho. "Não houve furto nem quebra-quebra, uma ocorrência. O Caetano estava iluminado por Deus", diz Bia.
Se Deus não garantisse, ela garantia. Atendendo à exigência da prefeitura, a produtora havia providenciado um seguro no valor de R$ 3 milhões. "O dono de uma banca de jornal veio falar comigo: 'dona, estou ilhado no meio da multidão, e se acontece alguma coisa?'".
No dia seguinte, ela mandou uma equipe verificar os estragos. "A única coisa danificada era o teto da banca", diz. O dono recebeu sorridente os R$ 1.000 do seguro.
"Só ela poderia ter feito isso", diz Nizan Guanaes, presidente da agência de publicidade DM-9. Foi dele a idéia de colocar Caetano na esquina para marcar os 50 anos do Banco Itaú. "A Bia é como o gênio da lâmpada", diz Guanaes. "Pediu, levou."
Há quatro anos o publicitário confia à produtora os eventos mais importantes da Antarctica, cliente da DM-9. A parceria começou com a organização de um camarote no Sambódromo, no Carnaval de 1992. "Ela deu um show", diz ele.
Isto é Hollywood
Em 93, Bia transformou Madonna em garota-propaganda. Já que a cantora queria uma camiseta da seleção, por que não aproveitar e bordar nela o nome da empresa interessada?
Era pouco. No ano seguinte, recrutou Whoopi Goldberg, Kim Basinger e Ray Charles para fazer alguns comerciais de uma "brazilian beer". Ficou encantada com o profissionalismo made in Los Angeles. "Marcamos com a Kim às 5h. Às 4h45, chegava a limusine."
Jagger na porteira
"Para mim, você é o Mick Jagger: tenho que te botar cantando pelo país." Não era o que Fernando Henrique Cardoso esperava ouvir da integrante da sua campanha, em março de 94. "Não canto nem danço", respondeu. "Mas sabe falar."
Foi Guanaes (outra vez) quem a levou para a empreitada. "Ele me chamou para uma reunião e disse: 'Depois eu explico'. Chegamos num flat no Itaim e estavam lá o Tasso Jereissati, o Sérgio Motta e o Fernando Henrique. Fiquei supermal, era uma reunião sigilosa e todo mundo me olhava torto."
Nizan, que a tinha apresentado como "sua assistente", propôs que ela coordenasse os eventos da campanha. Bia teve dúvidas: teria que deixar por seis meses a Face -que começara como uma salinha, em 89, e já ocupava meio andar em prédio da avenida Brigadeiro Faria Lima. Só em 1995, a empresa faturou R$ 3 milhões. "Se a campanha desse errado, podia botar tudo a perder".
Muito antes de 15 de novembro de 1994, soube que a partida estava ganha. "Em Barretos, tive certeza", conta. Era um risco calculado: no dia 27 de agosto, o candidato faria uma aparição-surpresa na Festa do Peão de Boiadeiro, diante de 30 mil pessoas. "Foi a maior saia justa. Não havia segurança, e eu não sabia qual seria a reação do público. Abri a porteira e falei, 'Vai!'. Ele foi ovacionado por aquela gente toda."
Brasília urgente
Quem não gostou muito da história foi o ministro das Comunicações Sérgio Motta -então secretário-geral do PSDB e coordenador da campanha. Ele não havia sido consultado e achou o risco grande. "Ele queria me matar. Mas depois ficamos amigos."
Também troca figurinhas com o presidente. Eleitora de FHC, não se sente traída pela recessão. "A classe média está pagando, mas os pobres estão vivendo melhor", acredita.
Durante a campanha, emagreceu oito quilos, morou em aviões e passou meses sem ver os filhos. "Pirei, não queria ficar longe deles."
Mariana, 15, não nasceu no palco, mas quase. Bia tinha 23 anos e era casada com Mário Manga, guitarrista do Premê. Professora de pré-primário, dava uma mão ao grupo nas horas vagas -era motorista, bilheteira. Percebeu que podia produzir.
O grupo se separou e Bia foi trabalhar para a produtora carioca Ação. "O Premê acabou porque não tinha gravadora que investisse. Era melhor do que esses Mamonas."
Com a Ação, sua principal missão foi acompanhar Luiz Gonzaga pelo Nordeste. "Eu me disfarçava de grávida para evitar o assédio dos coronéis. Às vezes, eles brigavam, mostravam a peixeira. Achavam que eu queria mandar mais do que eles".
Só via os filhos quando estes viajavam ao seu encontro. "Estavam crescendo longe de mim", diz. Cansada, decidiu abrir com a irmã a Face.
Siamesas
A Face ganhou novo sócio em 1991: José Maurício Machline, 39. O apresentador do programa de TV "Por Acaso" contratou as irmãs para produzirem o prêmio Sharp (empresa de propriedade de sua família).
Desde então, os três são inseparáveis. Além de trabalhar sob o mesmo teto, passam juntos férias, Natal, Ano Novo. "Só não tem sexo", diz José Maurício. "Ele é o irmão que a gente não teve", diz Bia.
Fernanda e Bia não se desgrudam -até a ginástica diária é em dupla. "Somos muito agitadas", conta Fernanda, responsável pela parte técnica dos eventos. "Mas eu desligo. Tenho impressão de que, até na ginástica, a Bia está produzindo."
"Quase um homem"
Certo dia, Bia "saiu na porrada" com um segurança em Belém. Assistindo de camarote, o senador Fernando Henrique Cardoso. "Ele me disse: 'Bia, eu sabia que você era brava, mas você é quase um homem!'".
O presidente não está só. "Ela é a Margaret Thatcher dos eventos", diz Guanaes. "Uma vez, Carnaval em Salvador, havia uns motoristas que ficavam saindo o tempo todo e se perdiam. Então, ela pegou uma corrente e os prendeu na mesa."
"Este país é machista", diz a produtora. "Você tem que ser firme, sem
deixar de ser feminina, e ter o dobro da energia de um homem." Vale a pena? "Eu me sinto realizada. Mas coloco o trabalho em primeiro lugar. Muita gente não segura essa, especialmente numa relação." No momento, está separada do segundo marido -o publicitário Valdir Costa.
Chá no viaduto
Depois de Caetano, seus clientes ficaram mais abusados. O último pedido exótico é o de uma marca de chá que quer fazer um grande evento em São Paulo. Onde? No viaduto do Chá, claro. "Vamos ver", diz.
Bia encurtou as férias de janeiro para cuidar de um projeto diferente: descobrir talentos nas áreas de cinema, vídeo, pintura, escultura, design e novas mídias -uma iniciativa da Antarctica em conjunto com a Folha. "Acho que vai mexer com a cultura do país. Para mim, é uma volta às raízes."
Ela adoraria voltar ao mundo dos grandes shows. Tem loucura pelo Pink Floyd. "Está todo mundo tentando trazê-los para cá", conta.
Fala sem problemas do concorrente -o Banco de Eventos de José Victor Oliva, que faz as produções da Brahma. "Eu me dou superbem com o Zé Victor, nos ajudamos."
Morar em Los Angeles já passou pela sua cabeça. "Eu adoro São Paulo, jamais sairia daqui. Sou superpaulistana." A cidade, acredita, não está assim tão distante de LA. "Temos profissionalismo e estrutura. Falta tecnologia, mas temos jogo de cintura. Quer prova maior do que o show do Caetano? Gringo nenhum faria aquilo."
Brasileiro não faria. Parar São Paulo foi o seu limite? "Não posso ir além disso. Quer dizer, eu não posso montar um show do Chico Buarque em dez horas, posso?"

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