São Paulo, terça-feira, 23 de janeiro de 1996
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Planos de ano novo vão para vala comum

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Aceitar, enfim, Fulaninha, essa absurda divisão do tempo em dias, meses, anos. Época péssima, é verdade, essa que acabou de terminar: essa de precisar reunir um espírito qualquer de comunidade, de fraternidade, de amizade, para virar o ano. Árvores e fachadas enfeitadas de luzes, lojas exibindo presépios, pacotes, papéis de presente.
Pior ainda: reunir os cacos do que se convencionou chamar família para uma ceia de Natal, um almoço de Ano Novo, essas coisas. Sentar-se ao redor da mesa, engolir a seco e traçar o peru, sorver o champanhe. Todo ano é isso, o cerimonial fracassado mas sempre reinaugurado.
Fez o quê, ano passado? Você pergunta. O balanço anual inevitável. Não fez nada -você vai dizer. Nem tenho obrigação de fazer qualquer coisa para o ano (na minha terra se chama o ano novo de "para o ano"). Vontade de irresponsabilidade, de voltar a ser criança -criança que só gosta mesmo é de "Fanta Uva", de arrotar e rir, de peidar e rir, essas bobagens.
Apaixonou-se? Você pergunta. Apaixonar-se, outro ritual fracassado mas sempre reinaugurado. E contar se dormiu com mais de um homem ano passado. A nova agenda, já comprou? Comprar agendas, cuidar para não errar, na data do cheque, o número do ano novo. Tem planos? Como preencher tantas páginas de agenda em branco?
Vê se apresenta alguma obra -você faz questão de apontar-, porque, ano passado, foi todo mundo apresentando obra disso, obra daquilo, e eu quieta, muda, achando tudo medíocre, sem sentido, arranjo barato entre narcisistas de terceira categoria -o mundo cada vez mais cheio de gente ordinária na parada de sucessos. Arg! Um engulho.
Entra ano, sai ano, e você achando ridículo a pessoa escrever esses tipos de coisa. Mas isso é um trabalho como outro qualquer. E pelo menos eu não estampo fotografia minha, nem faço propaganda de amigo baiano ou americano -como fazem esses colunistas chinfrins (que escrevem mal! muito pior do que eu!) de tantos jornais e revistas.
Começar o ano assim, com essa sua opinião e a dos outros: dizem que revistas são feitas para emburrecer o já burro público que as lê. É preciso agradar com burrice o público burro -é convenção universal de asnos, muares e jumentos.
É preciso fazer como eles fazem, você observa: atirar tudo, inclusive a mim mesma, na vala comum da falta de importância a que se relegam as coisas e as pessoas.
Além do mais (claro que você vai dizer), uma pessoa como eu, que não escreve para leitores, mas para si própria. Mas eu não estou podre por dentro. A diferença é que, entra ano, sai ano, e não estou podre por dentro. Nem estou vazia, como os homens vazios. E ninguém pode negar que sempre tenho a melhor das intenções com todos, todo ano. De resto, nosso destino incontrolável, pasto de jegues, para o ano.

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