São Paulo, terça-feira, 23 de janeiro de 1996
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Somos todos penetras no Primeiro Mundo

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Estou no avião voltando ao Brasil. A 30 mil pés de altura sempre me espanto com o milagre deste barco cortando o espaço negro enquanto tomo uísque. Este sentimento de temor reverencial me acompanha desde que cheguei a Nova York.
Diante do Boeing, eu sou o índio de Caramuru, fascinado. Me humilha e ofende a sonda Galileu chegando em Júpiter e o Hubble descobrindo bilhões de galáxias, enquanto o Paulo Paim e Lula tentam esmagar a liberdade progressista de Vicentinho.
O sentimento que torna os brasileiros lá embaixo em Nova York é um blend de despeito com medo, como crianças no mundo de adultos. Em NY, eu me sinto mais penetra que um estrangeiro. L.F. Veríssimo divide os brasileiros no exterior entre os que fingem que não são brasileiros e os que ostentam alegremente esta condição, cantando "Mamãe eu quero" nos restaurantes. Eu sou um terceiro tipo: o incógnito. Nem americano nem gargalhante consumista, eu ando em NY como um ex-combatente em terra inimiga. Sou soldado de uma guerra que ninguém sabe que houve, mas que foi o delírio maior de minha geração.
Ah, que saudades do imperialismo norte-americano!... Como era boa a velha antinomia colônia-metrópole! Por exclusão, éramos alguém. Não sermos americanos nos definia. Éramos o vazio do mundo, éramos as vítimas e esta condição dava sentido a nossas vidas. Que teria sido de mim, sem o imperialismo? Não éramos atrasados, éramos explorados, e esta dor nos absolvia e santificava. Nossa grandeza vinha desta destituição, desta imensa posse de misérias.
Até hoje, a Jandira Feghalli e o José Dirceu pensam que são o sal da terra.
Aqui no DC-10, olho a asa lá fora iluminada pela luz vermelha e me lembro de um desenho de Roberto Magalhães que era uma grande arraia saltando sozinha no oceano chuvoso. Penso na solidão do chamado "homem do Terceiro Mundo", perdido nas multidões que andam na neve. É impressionante como todos andam "no presente", ali na 5ª Avenida. Não há promessas no ar. Só os bens sendo consumidos, só as vitrines enfeitadas do fim de ano. Ninguém quer chegar a nada. No Brasil, ou estamos no passado ou em trânsito. Aqui nos Estados Unidos, ninguém pensa em conjuntos. Só em partes.
Eu me lembrei ali na neve de uma noite em Hollywood. Bernardo Bertolucci, Cacá Diegues e eu. Estávamos na Avenue of the Stars e eu olhava com inveja para o chapéu de Bertolucci (ele usava chapéu e um casaco de couro velho, no requinte do sucesso). Falávamos das diferenças entre Europa e EUA. Ele disse: "A América é diferente da Europa porque o vento do marxismo nunca passou por aqui..." Neste momento bateu um pé de vento mesmo e Cacá, que não ouviu direito, perguntou: "O que foi?". Eu repeti: "Foi o vento do marxismo..."
Olho ali na 5ª Avenida e realmente ninguém está pensando em Karl Marx. E eu não consigo tirar este homem da minha cabeça.
Que cacete sou eu, inferior e "superior" a esta "alienação capitalista" e cada vez mais esquecido e ridículo? Lembrei-me de Glauber Rocha vindo para os EUA. Tinha feito sua terceira obra-prima: "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro".
Sucesso total, premiado em Cannes, Glauber podia fazer o que quisesse em Hollywood. Chegou e se hospedou logo num hotel de quinta categoria, perto da linha do trem, só porque o hotel tinha um lindo nome paródico: "The Magic Palace of the Star". Glauber não aguentou a barra do sucesso, não aguentou fazer filme americano. E citou Brecht na Metro, fez reunião com produtores viajando de LSD, esculhambou todo mundo e não fez filme nenhum. Sal da terra.
Como fica tênue nosso passado de intelectuais... É mais difícil do que pensávamos. Me sinto um babaca aqui em NY (dirão alguns que finalmente "me encontrei"...). Mas pareço uma figura de retórica, uma metonímia andando pela rua.
Na América Latina, o intelectual sempre foi um pneu-estepe, um quebra-galho para a ausência de representação institucional.
Assim foi Glauber, assim foi José Marti, assim foi Sarmiento, assim foi Rui Barbosa. Até hoje. Vejam. FHC é o último filho de Rui Barbosa, o último elo desta corrente que pode se quebrar, FHC é o último personagem de "Terra em Transe".
Sozinho, FHC é a própria "teoria da dependência".
Sozinhos, fomos guerrilheiros sempre com as "idéias fora do lugar". No fim do século 19, importamos o liberalismo em plena escravidão. Neste século, tivemos o marxismo sem povo. Agora, temos o neoliberalismo sem capital.
Mas nossa esperança sempre foi comovente. A cada porrada da realidade, íamos mudando a "revolução". Das certezas duras de pré-64, passamos ao culto da "dúvida política", por onde uma fecunda revisão dos dogmas levaria a novos níveis de luta.
Levou a 68. Depois, a esquerda ofereceu o corpo na guerrilha suicida, enquanto outra esquerda fritava a cuca na piração das drogas, tudo para não perder o vazio que nos enriquecia. E as porradas aumentavam. Lembro-me de Dusan Makavejev, o cineasta anarquista da Iugoslávia, me dizendo em Las Vegas: "Isto não é o pesadelo do capitalismo; isto é o sonho do proletariado!". Senti ali que não bastava o sentimento de justiça, e que começava a falecer o tesouro maior dos intelectuais: a negatividade. Não adiantava criticar negativamente o mundo, que ele não estava nem ali.
E diante da grande Las Vegas que o mundo virou, os intelectuais não desistiram. Se antes se identificavam com a pureza proletária e queriam ir colher arroz na China ou cana em Cuba, passaram a se identificar com a eficiência dos burgueses. Da pureza para a eficiência. A cultura européia foi sendo substituída por "serviços americanos". E se antes falávamos de "síntese", passamos a falar do "fragmentário" como se fosse uma nova "totalidade". Hoje, quanto mais me aceitam, menos sou.
Peço um uísque à aeromoça. Lembro que a primeira mulher que tive foi uma aeromoça da Panair. Ela me apanhou no intervalo da ópera no Municipal. Eu ali, virgem, já me perdia no sonho da Europa. Verdi, aos 16 anos, que otário. Ela me levou para o apartamentinho no Catete, onde tinha um retrato do Tony Curtis na penteadeira. Era o imperialismo.
Hoje, quando vim pegar o avião, o chofer do táxi usava turbante. Perguntou de onde eu era. Do Brasil. Me olhou como um colega.
"Eu também vim de um país desgraçado", me disse. "Bangladesh". E enquanto ele falava sem parar sobre miséria, maremotos, da família faminta lá na Ásia, que ele sustentava com as gorjetas do táxi, eu pensava: "Meu Deus, como poderei viver sem Marx?".

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